Laurissilva na Madeira: “Corremos o risco de estar a fazer desaparecer espécies ainda não descritas”
Embora as informações oficiais digam que a floresta húmida da Laurissilva, no Norte da Madeira, está a salvo do incêndio, investigadores acreditam que ecossistemas importantes já foram atingidos.
A palavra “relíquia” é apropriada para caracterizar a grande mancha da floresta Laurissilva, situada nas vertentes Norte da ilha da Madeira, com dezenas de espécies endémicas, património mundial natural da UNESCO e Reserva da Biosfera. O último pedaço com alguma escala de um ecossistema que, até há três milhões de anos, era característico da zona do Sul da Europa e Mediterrâneo, tem estado no centro das preocupações de investigadores, como a bióloga Helena Freitas, que, nos últimos dias, observam a expansão do incêndio na Madeira com apreensão.
Uma resposta oficial da Secretaria Regional da Agricultura, Pescas e Ambiente, do Governo da Região Autónoma da Madeira a meio da manhã desta terça-feira punha de parte esse perigo. “Relativamente à floresta Laurissilva podemos adiantar que, até ao momento, os incêndios ainda não a atingiram”, refere Lisete Rodrigues, assessora da secretaria, num e-mail enviado ao PÚBLICO, dizendo ainda que o Instituto de Florestas e Conservação da Natureza (IFCN) da Madeira estava empenhado no combate aos focos do incêndio, que deflagrou na quarta-feira última e já comeu cerca de 8000 hectares, principalmente nas vertentes Sul da ilha.
Mas às últimas horas da tarde desta terça-feira, Raimundo Quintal, investigador reformado da Universidade de Lisboa, geógrafo especializado em fitogeografia, conhecedor da flora endémica e nativa da ilha da Madeira, já não tinha tanta certeza desta informação. “O lume chegou à Boca da Torrinha e começou a descer para Boaventura, no lado contrário da [freguesia de] Curral das Freiras, para a zona Norte, que é uma zona com Laurissilva”, explica ao PÚBLICO o perito, que vive na ilha da Madeira e conhece bem a sua biodiversidade. Esta informação chegou-lhe por contactos dentro da ilha e também pelo que viu em sites que indicam os estados dos incêndios activos a partir de imagens de satélite. “Esperemos que, à noite, com o aumento da humidade, [o foco de incêndio] não tenha grande avanço” na região da Laurissilva, refere.
Manuel Filipe, presidente da IFCN, disse ao PÚBLICO ao fim da tarde que não tinha informação do avanço do foco na Boca da Torrinha. Segundo o responsável, ao longo de terça-feira, o incêndio “evoluiu” em direcção ao pico Ruivo que, com a Boca da Torrinha e o Curral das Freiras, formam um triângulo na parte central e montanhosa da Madeira. O pico Ruivo é o ponto mais alto da Madeira, com uma altitude de 1861 metros, muito acima do limite onde a flora característica da Laurissilva sobrevive, devido ao gelo e ao frio. Na região Norte, aquele património da UNESCO estende-se entre os 300 e os 1300 metros, ocupando 15.000 hectares, um quinto da área da ilha.
“É uma relíquia. É única. É a mancha mais íntegra de uma floresta histórica. É a maior unidade representante dessa floresta. Por ser uma floresta com milhões de anos, tem um conjunto de espécies endémicas, que dizem muito sobre o seu carácter singular”, explica ao PÚBLICO Helena Freitas, bióloga, professora da Universidade de Coimbra e cátedra UNESCO da biodiversidade. “Fiquei chocada por não ouvir falar da Laurissilva” pelas autoridades madeirenses nos primeiros dias do incêndio, refere a especialista, que fez várias publicações nas redes sociais a alertar para a questão. “A prevenção não pode ser só do lado das casas e das comunidades, mas também tem que se proteger a floresta”, reforça.
A mãe dos madeirenses
O IFCN diz não ser ainda possível “fazer o balanço” do impacto dos incêndios no resto da ilha a nível da biodiversidade, segundo Lisete Rodrigues. Mas muitos outros ecossistemas importantes já terão sido atravessados pelo fogo, garante Miguel Sequeira, botânico e professor na Universidade da Madeira, que conhece bem aquele território. “Existem pequenas manchas de Laurissilva mediterrânica na zona Sul da Madeira. Olho para a área queimada e sem dúvida nenhuma arderam. Os ecossistemas vão precisar de muitos anos para recuperar”, diz o especialista ao PÚBLICO, referindo-se à laurissilva do barbusano, cujas espécies de árvores dominantes estão adaptadas ao clima mais seco que ocorre nas vertentes do Sul da ilha, onde não chove tanto.
O botânico explica que as sequências de incêndios que têm vindo a ocorrer nas últimas décadas – 2010, 2012 e 2016 são apenas exemplos mais expressivos de fenómenos causados por mão humana, que as alterações climáticas têm tornado mais devastadores –, impedem os ecossistemas de recuperar e atingirem o seu clímax, quando providenciam o habitat para muitas espécies de animais, que na sua falta correm risco de desaparecer. “Cinquenta por cento das 110 espécies vegetais endémicas da Madeira estão na zona Sul, não estão na Laurissilva [no Norte]”, contextualiza.
Miguel Sequeira tem neste momento dez espécies vegetais da Madeira novas para a ciência para descrever. E acredita que haverá outras por descobrir. “Corremos o risco de estar a fazer desaparecer espécies ainda não descritas”, afirma. “É um falhanço civilizacional”, diz, avaliando a falta de capacidade que a sociedade tem de evitar os desastres ecológicos que têm ocorrido na Madeira.
Além do valor a nível da biodiversidade – que atrai uma enorme quantidade de turismo –, a floresta tem uma importância enorme no equilíbrio da ilha. “Eu diria que a Laurissilva é a mãe dos madeirenses. Não teria havido água do Norte para o Sul da ilha se não houvesse Laurissilva, ela é fundamental para travar erosão e diminuir as cheias, catastróficas. E, além disso, é fundamental para as reservas de água que temos”, afirma Raimundo Quintal. “Infelizmente, há muitos madeirenses que ainda não entenderam que a mãe deve ser bem tratada, senão pode morrer cedo.”