Bores, o caracal preso entre dois mundos

Se o Bores não se adaptava a um zoológico e era demasiado perigoso como animal de companhia, seria a eutanásia uma alternativa para evitar uma vida de sofrimento?

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A trágica morte do Bores, um caracal mantido como animal de estimação no Funchal durante seis anos, leva-nos a refletir sobre este caso que nos remete para o problema do tráfico e detenção ilegal de espécies selvagens. Após o Bores ter sido apreendido pelo Instituto das Florestas e Conservação da Natureza (IFCN) no início de julho, surgiu uma petição bem-intencionada que defendia a punição da proprietária, ao mesmo tempo que clamava pela devolução do animal à sua "família", o que acabou por acontecer a 31 de julho. Mas será que esta petição estava devidamente informada? A petição, assinada por mais de 18 mil pessoas quando foi entregue ao IFCN, reconhece que os linces não são animais domésticos, mas afirma que o Bores, em particular, é um animal domesticado. Afinal, em que ficamos?

Para responder a esta questão, precisamos compreender que os animais domésticos não são uma construção social. A domesticação é um processo que requer muitas gerações, num processo gradual e geograficamente disperso, que confere às espécies envolvidas uma vantagem evolutiva. O Bores foi descrito como “um autêntico gato”, mas, por mais dócil e adaptado à vida familiar que fosse, o Bores não era, nem jamais poderia ser, um animal doméstico. Ele era um animal selvagem criado por humanos, provavelmente exposto aos seus detentores durante períodos críticos de aprendizagem, o que permitiu o desenvolvimento de laços de apego e uma vida em muitos aspetos semelhante à de um gato doméstico. Esta situação é comum com felinos selvagens que vivem como “animais de companhia” noutros países, incluindo linces, servais, tigres, panteras e leões. No entanto, estas ternas realidades nem sempre se mantêm quando surgem imprevistos, ou ao longo de toda a vida do animal. Em determinadas circunstâncias, estes animais podem voltar exibir os seus comportamentos naturais de defesa, evasão, jogo ou predação, com consequências trágicas para os humanos à sua volta.

Mas há outros mal-entendidos neste caso. Grupos de proteção animal regozijaram-se com a devolução do Bores aos seus proprietários, considerando que a situação se resolvia com o pagamento de uma simples coima. A petição chega a afirmar que o Bores foi adquirido em bebé, “antes da consciência sobre o bem-estar animal”. Isto é absolutamente falso, uma vez que desde Agosto de 2015 que a detenção de exemplares de espécies protegidas da fauna ou da flora selvagens é criminalizada, com uma pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias (n.º 3 do artigo 278 do Código Penal). A detenção de espécies protegidas é um crime que não pode ser desculpado por razões afetivas. Caso contrário, desde que um detentor ilegal demonstrasse afeição e cuidado pelos seus animais, poderia continuar a mantê-los mediante uma simples coima? E se tivesse dez animais, e se tivesse cem?

Além dos aspectos legais, é importante considerar os riscos desta detenção para a sociedade. O caracal é um predador capaz de ferir ou matar um cão, ou até mesmo uma criança. Nos EUA, onde a detenção de alguns felinos deste porte é permitida, já se registaram pelo menos nove ataques graves a humanos por caracal, serval, lince-vermelho, ou lince-europeu, seis dos quais envolveram crianças (Born Free USA, 2024). Poderiam ou deveriam as nossas autoridades assumir este risco, devolvendo o Bores à detentora?

As tensões deste caso derivam da condição única de o Bores, simultaneamente adaptado à vida como animal de estimação e privado da oportunidade de uma vida natural e do seu telos (propósito inato ou razão de ser). As perceções sociais do caso refletem esta dicotomia, com opiniões diferentes sobre os proprietários (vistos como cuidadores diligentes ou como detentores ilegais) e sobre as autoridades (ora protetoras do interesse público ora executoras cegas de um animal inocente em nome da lei). No entanto, a triste verdade é que o bem-estar dos animais selvagens fica irreversivelmente comprometido no primeiro momento em que caem nas redes do tráfico e da detenção ilegal. A partir desse instante, nunca mais é possível proporcionar-lhes uma vida plena. Embora não seja o caso em Portugal, em países como os EUA, Reino Unido, Finlândia, Suécia e Noruega, muitos destes animais acabam por ser abatidos devido aos riscos para a segurança e saúde públicas, ou por não existirem alternativas que garantam o seu bem-estar. Se o Bores não se adaptava a um zoológico e era demasiado perigoso como animal de companhia, seria a eutanásia uma alternativa para evitar uma vida de sofrimento?

Muitas questões permanecem em aberto sobre este caso, nomeadamente como pôde um espécime protegido por convenções internacionais entrar na Região Autónoma da Madeira sem ser detetado, e quais as circunstâncias concretas que resultaram na sua morte. Mas por mais trágico e comovente que seja o fim do Bores, urge ver para além do “gato de companhia”, e encarar este caso com frontalidade e responsabilidade.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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