A reparação histórica que Portugal deve a Angola é não andar a dizer que “descobriu Angola”

Marcelo esteve bem ao falar de reparações históricas por causa do colonialismo, mas, “se for reparação material, não tem valor”, diz oposição angolana. “Males” de 500 anos “não são quantificáveis”.

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Abel Chivukuvu acha que “encontrar um modelo humano mais aprofundado” entre os dois países é uma forma de reparação Nuno Ferreira Santos
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Quando se tem uma história comum de 500 anos “é inútil não considerar como prioritária a relação de Angola com Portugal”. Falamos “a mesma língua, temos hábitos comuns, até sabores comuns e, sobretudo relações familiares”; portanto, quando o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa falou na necessidade de reparações de Portugal às suas antigas colónias, Abel Chivukuvuku, o número dois da oposição angolana, acha que o chefe de Estado “esteve certo, mas não está certo”.

Para Chivukuvuku, o Presidente esteve bem quando se referiu às reparações históricas. Esteve “incorrecto” foi ao “não elaborar o que é isso de reparações”. “É dinheiro? Porque, do meu ponto de vista, se for reparação material, não tem valor”, garantiu o antigo conselheiro de Jonas Savimbi e actual número dois da Frente Patriótica Unida, que nas últimas eleições conseguiu obter 90 lugares no Parlamento angolano.

“Os males que podem ter existido em 500 anos não são quantificáveis”, aquilo que teria “valor”, isso sim, “seria dar uma substância filosófica e conceptual diferente” àquilo que foi a história dos dois países e das suas relações, defende Chivukuvuku, em declarações ao PÚBLICO, falando em nome da coligação opositora que engloba a UNITA, o seu movimento PRA-JA Servir Angola, o Bloco Democrático e membros da sociedade civil. “Vale mais reparar corrigindo conceitos” do que usar a calculadora para apaziguar a má consciência.

“Por exemplo, é discutível o conceito dos descobrimentos. É preciso corrigir isso. Porquê? Porque você vem a minha casa e encontra-me. Vai dizer que descobriu? Não descobriu, encontrou-me. Os portugueses foram ao contacto, passaram a interagir com, e isso tem de ficar claro, historicamente: Portugal não descobriu Angola.”

Foram os primeiros europeus a chegar, é certo, mas encontraram “civilizações, havia gente”. Chivukuvuku admite que “havia, com certeza, uma superioridade de força dos europeus em relação aos africanos, porque já tinham pólvora e os africanos não tinham, mas, de qualquer modo, Portugal não encontrou povos completamente primitivos” – por exemplo, “o reino do Congo era uma civilização já estabelecida e funcional”.

Aquando da recente visita do primeiro-ministro, Luís Montenegro, a Angola, entre 23 e 25 de Julho, o Presidente angolano, João Lourenço, respondeu à questão da reparação histórica, dizendo que o país vai completar 50 anos para o ano, e “se durante 49 anos” não levantou a questão, “nunca” a irá levantar. Para o chefe de Estado angolano, trata-se de uma questão parecida com a definição de fronteiras entre países: “Quando esta questão é levantada, traz muita discussão e solução nenhuma.”

Em Abril, quando falou do assunto, Marcelo Rebelo de Sousa disse que Portugal tinha “obrigação de liderar” o processo de reparação aos países que foram colonizados, sob pena de perder “capacidade de diálogo”. O Presidente referiu, especificamente, que o processo não tinha de passar por “pagar indemnizações”, mas que poderia ser através do perdão da dívida aos países que foram colonizados ou dando “estatuto de mobilidade” aos nacionais dos países de língua oficial portuguesa.

Chivukuvu acha que “encontrar um modelo humano mais aprofundado” entre os dois países é uma forma de reparação – por exemplo, no “tratamento recíproco, tanto dos luso-angolanos ou descendentes angolanos aqui em Portugal, como a maneira com que os portugueses são tratados nos países africanos de língua portuguesa”.

[De outro modo,] como é que vamos avaliar a dimensão da reparação material no caso de Portugal, com o tráfico de cerca de 60 milhões de pessoas? Isso vale o quê? Quanto vale o sofrimento desses 60 milhões de pessoas? Quanto valem as comunidades que ficaram destroçadas?”, insiste o deputado angolano da oposição.

Que se corrijam, pois, os conceitos, que se diga que “os portugueses vieram ao contacto com civilizações”, que “as encontraram, passaram a interagir, mas não descobriram”. Para Chivukuvuku “é preciso entrar nessas dimensões”, que, apesar de “muito mais abstractas”, representam um lado “histórico muito mais profundo”. E uma forma mais real de lidar com o passado colonial.

O líder do PRA-JA veio a Portugal, juntamente com os líderes da UNITA, Adalberto Costa Júnior, e do Bloco Democrático, Filomeno Vieira Lopes, para encontros com forças políticas portuguesas e outras organizações, de modo a transmitir os pontos de vista da oposição angolana sobre este e outros assuntos do seu país que não conseguiram transmitir a Luís Montenegro, em Luanda, porque o primeiro-ministro não se encontrou com eles.

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