“É nosso direito”: Linda fez um aborto em Itália, contra a vontade de médicos e de Meloni

Meloni é antiaborto e autorizou “grupos que apoiam a maternidade” a entrarem em clínicas para dissuadirem as mulheres de interromperem a gravidez. Linda Feki abortou contra a vontade do médico.

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A cantora italiana Linda Feki relatou nas redes sociais a falta de acompanhamento médico durante o aborto que fez Claudia Greco/Reuters
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Com Giorgia Meloni no poder, Itália tem provavelmente a primeira-ministra mais assumidamente antiaborto da Europa Ocidental. No entanto, a interrupção da gravidez no país maioritariamente católico e que acolhe o Vaticano nunca foi fácil.

Quando Linda Feki, uma cantora e compositora de 33 anos, relatou nas redes sociais o estigma e os abusos que sofreu ao ser submetida a um procedimento para interromper a gravidez, recebeu mensagens sinceras de apoio de muitas mulheres italianas que se identificaram com a experiência por que tinha passado. Por outro lado, a artista de Nápoles também recebeu críticas e insultos que espelham a intensificação das divisões nacionais sobre os direitos reprodutivos durante o Governo de Meloni.

"Decidi tornar a minha história pública, porque tenho um perfil público e talvez a minha voz pudesse ter mais eco. Senti uma espécie de responsabilidade enquanto cidadã, mas também como artista, de transmitir a mensagem de que o aborto é um direito", explicou à Reuters.

Os abortos em Itália são legais nos primeiros três meses de gravidez e quando a saúde mental ou física da mãe está em risco. Ainda assim, existem obstáculos burocráticos, culturais e práticos.

Segundo dados do Ministério da Saúde italiano, cerca de 63% dos ginecologistas no país fazem parte do pessoal médico oficialmente conhecido como "objectores de consciência" e recusam-se a fazer abortos por razões éticas. Este número sobe para mais de 80% em algumas zonas do Sul de Itália.

Inicialmente, Linda Feki dirigiu-se ao hospital San Paolo, em Nápoles, onde foi atendida por um ginecologista que lhe perguntou se queria realmente abortar e insistiu que a gravidez estava numa fase mais avançada do que seria possível, tendo em conta a última vez que a cantora disse ter estado com o parceiro.

Segundo Linda, o médico insinuou que poderia ter dormido com outras pessoas. Um exame posterior efectuado por um ginecologista de um hospital privado confirmou que a gravidez estava numa fase mais inicial.

Em declarações à Reuters, Luigi Terracciano, director do serviço de Ginecologia e Obstetrícia do San Paolo, lamenta a má experiência da artista com o médico que a recebeu. "Tenho vontade e interesse em encontrar-me com ela e esclarecer a situação, se ela assim o desejar", declarou.

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Em Itália, os abortos são legais nos primeiros três meses de gravidez, mas nem todos os médicos aceitam fazê-lo Claudia Greco/Reuters
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63% dos ginecologistas recusam-se a fazer abortos Claudia Greco/Reuters

Depois desta primeira consulta, Linda Feki dirigiu-se ao hospital Cardarelli. Disse que os medicamentos pré-cirúrgicos lhe causaram dores intensas, mas diz que ninguém lhe ofereceu analgésicos, e que após a cirurgia uma enfermeira "objectora de consciência" se recusou inicialmente a responder a um pedido de ajuda.

A intervenção cirúrgica aconteceu a 4 de Março, dia em que França, país vizinho, declarou o aborto um direito constitucional.

No Instagram, a artista escreveu que achou "desolador" ser repreendida pelo médico e pelas enfermeiras sobre a gravidez "imediatamente após a cirurgia".

"Não deve haver juízos de valor sobre uma escolha que é um direito nosso", defendeu.

Contactado pela Reuters, um porta-voz do hospital Cardarelli respondeu que a instituição está a par das reacções de Linda Feki e admitiu melhorar os serviços de assistência aos doentes. O porta-voz disse ainda que estava em contacto com a artista para discutir o assunto. Linda Feki confirmou-o.

Conflitos culturais

Giorgia Meloni, de 47 anos, é a primeira mulher primeira-ministra de Itália e lidera um Governo conservador desde 2022. Na autobiografia best-seller, I am Giorgia (Sou a Giorgia, em tradução livre), afirma ter nascido depois de a mãe, que era solteira, ter decidido não abortar.

Apesar de se opor pessoalmente ao aborto, prometeu não alterar ou abolir a lei de 1978 que o legalizou. Em vez disso, insiste naquilo a que chama uma aplicação mais completa da lei, salientando que também se trata da prevenção.

A coligação no poder aprovou legislação que permite a entrada de grupos que "apoiam a maternidade" nas clínicas de aconselhamento sobre aborto e propôs recentemente um "subsídio de maternidade" de mil euros por mês durante cinco anos para as mulheres grávidas com baixos rendimentos que se apresentem nessas clínicas.

Ao receber os líderes do G7 em Junho, Meloni insistiu para que fossem retiradas da declaração final as referências à importância do "aborto legal e seguro". Um dos ministros italianos justificou-se dizendo que a primeira-ministra queria evitar ofender o convidado da cimeira, o Papa Francisco, que descreveu o aborto como "homicídio".

Os grupos antiaborto são um lobby importante em Itália, com fortes ligações a vários legisladores da coligação governamental.

Jacopo Coghe, porta-voz de um dos grupos que organizam o comício anual "Escolhemos a Vida" em Roma — ProVita & Famiglia — acredita que as divisões na sociedade italiana se intensificaram.

"O clima mudou, os nossos activistas, especialmente os jovens, estão mais determinados. Mas, por outro lado, os incidentes de intolerância contra nós aumentaram, com dez actos de vandalismo contra as nossas instalações nos últimos quatro ou cinco anos", acrescentou.

O porta-voz disse ainda que não esperava que Meloni alterasse a lei do aborto, mas que o objectivo era mudar a opinião pública contra a lei para abrir caminho à revogação da mesma.

Entretanto, espera que o Governo de Itália faça mais para evitar os abortos, especialmente no que diz respeito a ajudar as mulheres que receiam não ter meios para ter um filho.

Os defensores do direito ao aborto destacam que não existe nada de errado em oferecer dinheiro às mulheres grávidas, especialmente se estiverem a precisar, mas defendem que não devem ser expostas ao estigma ou à pressão psicológica.

Francesca Pierazzuoli, psicóloga que supervisiona as clínicas de aconselhamento sobre o aborto na área metropolitana de Milão, disse que o seu trabalho "não tem nada que ver" com persuasão e que os grupos antiaborto ainda não entraram nas clínicas que supervisiona.

Já Elisabetta Canitano, ginecologista e activista veterana do direito ao aborto em Roma, afirmou que aqueles que tentam convencer uma mulher a ter um filho que não quer "não fazem ideia do inferno para onde a estão a empurrar". "Não fazem ideia nenhuma", reforçou.