Num tempo em que lamentamos que já pouco se fale de sazonalidade, e em que tudo está disponível durante todo o ano, há uma tradição (sim, já podemos falar em tradição) que contraria isso e que regressa, religiosamente, faz agora nove anos, sempre em Agosto: o tomate-coração-de-boi-do-douro e a sua festa anual.
A festa dura todo o mês nas ementas de 22 restaurantes do Douro, mas é no dia 23 que tem o seu momento alto, este ano na Casa de Mateus, em Vila Real, com o concurso entre produtores das diversas hortas e quintas da região. No dia 22 haverá um workshop com a italiana Erika Zandonai, especialista em produção e transformação do tomate, e a 24 acontece a festa A Capella no adro da capela barroca de Arroios, Vila Real, com provas de tomate e mercado de produtores.
A caminho do décimo aniversário, que se comemora no próximo ano, esta iniciativa, nascida do entusiasmo e persistência de três amigos – Celeste Pereira, da empresa de comunicação e eventos Greengrape, Edgardo Pacheco, jornalista do PÚBLICO, e Abílio Tavares da Silva, da Quinta de Foz Torto – marca 2024 com a edição de um livro, Tomate Coração de Boi do Douro – A Outra Riqueza do Vale Mágico, prefaciado por Miguel Poiares Maduro, admirador do fruto e defensor da valorização dos territórios através dos seus produtos tradicionais.
Para quem tiver dúvidas sobre o que caracteriza esta variedade e como se pode distinguir de outras, os muitos textos e imagens que compõem o livro dão resposta a todas as perguntas. Comecemos então por estas: o que torna este tomate, produzido no Douro, tão particular? E como o podemos reconhecer?
O livro apresenta-nos o seu perfil: é carnudo e suculento, fresco, com nuances terrosas e um sabor entre o doce e o ácido (pode ser mais doce “dependendo da horta e do sol que o banhou”). A polpa é firme e delicada, a cor é vermelha e tem um coração grande, “às vezes perfeito, outras esconso”, possuindo poucas sementes.
A pele é fina – e esse é um dos argumentos dos que defendem que a melhor maneira de o saborear é deslocarmo-nos ao local onde é produzido, e daí a festa ser no Douro. Transportá-lo para outras zonas do país é possível, claro, mas arriscamo-nos a que, na viagem, a delicada pele se rompa.
Podendo ser produzido em diferentes regiões, beneficia em particular do terroir do Douro, onde os “dias de muita luz, quentes e secos [são] fundamentais para a doçura discreta que o fruto apresenta”, enquanto as noites frias são “responsáveis pela sua textura firme”. A estas características do clima somam-se os “solos de xisto que regam sem encharcar o pé do tomateiro e o alimentam de micronutrientes”.
“A grande diferença em relação a outros tomates é a produção ao ar livre, a exposição solar”, explica Celeste Pereira. “Tem uma grande influência nos sabores, daí insistirmos muito nisso.” A convicção de Celeste, Edgardo e Abílio foi contagiando outros produtores por toda a região. “Há nove anos, quando começámos, tínhamos pouquíssimas quintas”, recorda a responsável da Greengrape. “Neste momento já há 38 quintas envolvidas. O que pretendemos é provar que o Douro não é só vinho e vinha e que temos outras riquezas que vale a pena explorar e promover.”
Apesar de, em termos de números, não se poder falar de uma grande produção, há um crescimento muito evidente. “O restaurante Toca da Raposa [em São João da Pesqueira] já vendeu três toneladas numa época, e o Calça Curta [Foz do Tua] cinco toneladas”, diz Celeste, notando que a época “pode ir até meados ou final de Outubro, dependendo do clima de cada ano”.
A melhor forma de provar esta iguaria é, acredita, a mais simples: apenas com flor de sal e um fio de azeite. Claro que os chefs dos restaurantes que participam na festa são livres de usar a sua criatividade, apresentando o tomate de diferentes maneiras, mas “nós insistimos que todos têm de o colocar simples, na sua plena riqueza de sabor”.
Depois de o provarmos assim, podemos, também nós, em casa, testar outras formas – o livro agora lançado apresenta várias receitas, desde uma pasta de beringela e tomate de Miguel Castro e Silva até um tártaro de tomate, sardinha e molho romesco de Julien Montbabut, do Le Monument, no Porto.
E ligar tomate com vinho, pode ser um problema? No livro, Edgardo Pacheco explica como o contornar, relatando uma experiência feita durante a Festa do Tomate Coração de Boi de 2022. Conclusões? Assim, muito rapidamente: tintos com estrutura e álcool são de evitar com pratos com tomate (com todos os cuidados, talvez um tinto mais elegante e com taninos suaves possa casar com um arroz de tomate); brancos também serão de evitar; o melhor será um rosé não doce ou então um clarete ou um palhete.
Além do livro, os promotores da Festa do Tomate Coração de Boi do Douro estão a lançar também um Guia de Boas Práticas para a produção e um mapa com as quintas produtoras. “Estas obras vão provar que é possível ter um produto que consegue promover o território”, um objectivo que pretendem, no futuro, alargar a outros produtos de excelência da região, como os figos, as azeitonas, as laranjas, as amêndoas.
“Neste momento estamos perante uma crise social grande na região, esta vindima vai ser determinante, e por isso acreditamos que a diversificação é muito importante para o Douro, para termos outros momentos ao longo do ano em que podemos conquistar atractividade”, sublinha Celeste. E, com o décimo aniversário a aproximar-se, este é “um momento-chave para conseguimos apoios institucionais para a sustentabilidade futura do projecto.”