David “não era ninguém”, trabalhou nas obras e foi a Paris buscar bronze para Cabo Verde
O pugilista tinha “um sonho na mala” e deu ao país a primeira medalha em Jogos. No final, disse que se não lhe derem melhores condições deixa o boxe e vai trabalhar – e não pareceu estar a brincar.
Cabo Verde participa nos Jogos Olímpicos desde 1996, pelo que foi preciso esperar 28 anos para a nação africana descobrir um metal precioso no desporto. Ele chegou neste domingo e veio da categoria de -51kg do boxe. O país conquistou uma medalha de bronze, mas descobriu a sua nova mina de ouro.
A mina chama-se David de Pina, um pugilista “que não era ninguém”, palavras do próprio, que em Setembro trabalhava dez horas por dia nas obras e que conquistou, em Paris, a primeira medalha da história do país em Jogos Olímpicos. Não foi ouro, foi bronze, mas sabe-lhe à medalha mais alta do espectro olímpico.
Como um dia se disse sobre outras batalhas, esta conquista de David de Pina reveste-se sangue, trabalho, lágrimas e suor. E ele faz questão de deixar isso claro para todos.
“Sou um simples cabo-verdiano, que não era ninguém”, disse o atleta, antes da final. Depois da final, perguntámos-lhe se contava, depois disto, passar a ser alguém. “Acredito que agora sim. As pessoas sentem o que eu fiz. Sentem o meu boxe. Hoje, entrei nos quatro melhores do mundo – e melhor de África. Hoje, as pessoas reconhecem o meu talento. E, pelo que passei, mereço ser reconhecido”, apontou, na Arena Paris Nord, onde na meia-final perdeu de forma clara com o uzbeque Hasanboy Dusmatov, garantindo, ainda assim, que vai à cerimónia a Roland Garros receber o bronze.
David deu a Cabo Verde a tarde de glória olímpica que o país nunca tinha tido. E a sua própria glória, que também não tinha tido. Fora do ringue, mas também dentro dele, o pugilista é sorridente, comunicativo e carismático – até na escolha do penteado de dois “carrapitos”, que assumiu ser para lhe dar um ar diferente dos demais.
"Trabalhava dez horas nas obras"
Desde que trocou Cabo Verde por Portugal tem treinado em Odivelas, mas com poucos apoios. A bolsa olímpica (688 euros) é curta para um pai de filhos – são dois. E teve de ir trabalhar para as obras a meio da preparação olímpica.
“Trabalhava dez horas, imagina só. Um atleta cheio de talento e potencial de medalha a trabalhar nas obras dez horas, com um sonho na mala. Foi muito doloroso. Quem ia dar de comer aos meus filhos e pagar a minha renda? Eu gosto de trabalhar, mas prefiro o boxe. Na obra, qualquer um pode trabalhar, mas conseguir medalha olímpica...”, apontou, em Paris, referindo-se ao emprego que lhe deu de comer durante dois meses, com um salário de 1500 euros ganho pelo jeito para carpintaria desde pequeno.
Questionado sobre se espera que este resultado lhe mude a vida, o cabo-verdiano foi claro: “Acredito que sim. Só depois do resultado é que vem o benefício. E vou ser sincero: se não tiver melhores condições eu paro de treinar e de fazer boxe. Tenho família para sustentar e o boxe ainda não me deu isso. Se este resultado não mudar a minha vida, tenho de deixar e ir trabalhar para o futuro da minha família”.
David de Pina não poupa nas palavras na hora de gritar bem alto, para que o oiçam – e nem precisa da honra de microfone que lhe concederam na zona mista. Quer apoios, quer viver do boxe e quer ir a Los Angeles, daqui a quatro anos. E mostra a sagacidade de entender que é agora, depois da medalha, que mais pode exigir – a Cabo Verde e a Portugal.
“Não é só por Cabo Verde. Também faço história para Portugal. Portugal abriu-me as portas, deu-me residência. Portugal nunca tinha classificado ninguém para os Jogos no boxe. E Cabo Verde nunca tinha ganhado uma medalha”.
Bate no peito, mas também partilha louros
David não perde uma oportunidade de reforçar o sacrifício por que passou – e não tem de o fazer. “Tenho uma história de superação. Quem pára de lutar morre e é esquecido”, aponta.
Reforça-o uma e outra vez, umas vezes a “bater no peito”, outras a entregar, humildemente, os louros a quem trabalhou com ele – e por ele.
Fala do treinador, Bruno de Carvalho, com a profunda admiração de quem o segue de olhos fechados para onde quer que seja. Existe carinho na forma como se refere ao homem que o recebeu em Odivelas, o convenceu a sair das obras e lhe ensinou o que David ainda não sabia. “Portugal nunca teve um treinador como o Bruno de Carvalho”, garante.
E fala-nos também desse homem como o que discutiu com ele já em Paris, quando o pugilista não mostrou o foco que deveria mostrar. Desafiado a detalhar de onde veio essa falta de foco, já em ambiente olímpico, o atleta falou de alimentação.
“Eu sou muito alto para participar nos -51kg. Tenho 58, por isso tenho de perder sete para combater. Mas tenho problemas para cumprir o peso. Estava a comer muito. A quatro dias do combate ainda estava com 54kg. Ele [treinador] estava triste. Zangou-se comigo. Isto não é só um mar de rosas”.
Há dias, Gabriel Albuquerque, ginasta que ficou perto das medalhas, disse que, em Paris, aprendeu a desfrutar mais da modalidade. No caso de David a história é outra. Trata-se de mais do que desfrutar. “Em Setembro deixei de treinar para trabalhar, porque tenho de sustentar a minha família. Estou longe da minha família há dois meses. Fiz isto pela minha família. Se fosse por mim, se calhar teria desistido”.