Edna O’Brien (1930-2024), uma obra rebelde sobre o íntimo feminino

Sedutora e ousada na vida e na escrita, alguém a desafiar preceitos e uma moral rígida, a irlandesa Edna O’Brien, romancista, dramaturga, memorialista morreu aos 93 anos e deixa uma obra fundamental.

cultura,obituario,literatura,culturaipsilon,livros,irlanda,
Fotogaleria
Edna O'Brien em 2010 Ulf Andersen/Getty Images
cultura,obituario,literatura,culturaipsilon,livros,irlanda,
Fotogaleria
Edna O'Brien em 1968 Len Trievnor/Daily Express/Getty Images
Ouça este artigo
00:00
04:10

“Em tempos fui uma menina, mas já não sou.” A frase de abertura de Menina (Cavalo de Ferro, 2020), romance da escritora irlandesa Edna O’Brien, é uma porta para a brutalidade das páginas que se seguem, uma narrativa dura, magnificamente arquitectada a partir dos abusos cometidos contra mulheres adolescentes pelo movimento Boko Haram, no nordeste da Nigéria. Hoje, esse romance revelou-se o derradeiro de uma autora tão brilhante quanto corajosa, alguém que na sua vasta obra começou por desafiar a moral católica irlandesa e viu os seus livros censurados ao escrever sobre temas como a sexualidade feminina e a denúncia do papel das mulheres num país que as subjugava. Tudo numa linguagem considerada subversiva e marcada pelo lirismo e por um olhar cirúrgico para detectar detalhes reveladores da hipocrisia ou da ambiguidade prevalecentes.

Como, por exemplo, o que estava implícito na pergunta com que se confrontou desde cedo, num ambiente rural, de educação num colégio de freiras: “És ou não és boa rapariga?”

Josephine Edna O'Brien, nascida em Tuamgraney, no oeste da Irlanda, a 15 de Dezembro de 1930, cresceu nessa divisão simplista de mundo, estar entre o bem e o mal, o que desde cedo a obrigou a escolher um dos lados. Isso ia contra a sua natureza, como se percebe pela autobiografia que foi levando para a sua ficção logo a partir do romance de estreia, o primeiro da trilogia Raparigas de Província (Relógio d'Água, 2010) publicado em 1960.

E essa pergunta repetir-se-ia sempre que a mãe a visitava na sua casa de Londres, já Edna estava formada em Farmácia, divorciada e mãe de dois filhos. “És ou não és boa rapariga?” Nessa casa, Edna dava festas que se tornaram famosas. Entre os convidados havia gente como Shirley MacLaine, Philip Roth, Claire Bloom ou Paul McCartney. Edna, que era já autora de uma obra que se tornou proscrita no seu país de origem logo após a publicação do primeiro romance, conseguira o que sempre desejara: viver da escrita.

O erotismo, o desejo, o corpo feminino estiveram sempre no centro da sua literatura elogiada por nomes como Roth ou o seu compatriota John Banville. Numa entrevista ao Ípsilon em 2021, a escritora dizia que lhe interessava a busca de uma certa verdade, na medida da expressão “detalhe divino”, de Rilke, e foi atrás dela e desse detalhe que se lançou depois de ler a notícia de um massacre na Nigéria. Tinha então 86 anos, achava que já não iria escrever mais, mas decidiu apanhar um avião e ir atrás de uma história onde o corpo feminino voltava a ser o centro. No ano seguinte repetiu a viagem e lançou-se na escrita que classificou como “assustadora”.

Era a génese de Menina e um mergulho no inferno – onde não falta a ternura – através da escrita. Disse então ao Ípsilon: “A minha crença, então e sempre, é a de que o sofrimento imposto às pessoas, homens e mulheres, pode diferir proporcionalmente, na extensão da violência, na variedade dos horrores, mas a emoção e o medo e os sentimentos são comuns a todas as nações e a todas as pessoas, uma vez que os nossos terrores existem dentro de nós à nascença. O efeito, ou trauma como é chamado, acontece mais tarde e assume diferentes formas, dependendo do carácter inato. Algumas pessoas tentam obliterar, outras dizem que se esquecem e outras tentam recordar.”

O facto de se passar longe no mapa e de estar distante no tempo dos seus primeiros livros ou mesmo do romance Na Floresta (Cavalo de Ferro, 2019), outro momento alto de O’Brien, não a impede de ver no seu último livro uma continuidade de tudo o que fez: cerca de duas dezenas de romances e contos, peças de teatro, biografia.

Nessa conversa, dizia-se cansada, mas a imaginação que sempre geriu sem tirar o pé da realidade, permanecia, alimentada pelas leituras da antiguidade clássica, pelos mitos de Electra ou de Antígona. Edna O’Brien morreu este domingo, “pacificamente após uma longa batalha contra uma doença”, como informou a sua editora, a Faber. Pouco depois, Michael D. Higgins, o Presidente da Irlanda, escrevia um comunicado onde lamentava a morte de O’Brien. “Através dessa obra profundamente perspicaz e rica em humanidade, Edna O'Brien foi uma das primeiras escritoras a darem verdadeira voz às experiências das mulheres na Irlanda nas suas diferentes gerações e desempenhou um papel importante na transformação do estatuto das mulheres na sociedade irlandesa.”

Sugerir correcção
Comentar