Violência contra as mulheres no Brasil não dá sinais de abrandamento
Os índices de violência contra as mulheres são os que mais sobem, mesmo num quadro de queda da violência em geral, segundo um relatório. Meninas negras são as vítimas mais frequentes de violação.
No Brasil, a cada seis minutos há uma violação e na sua maioria as vítimas são meninas negras com menos de 14 anos. Os dados do mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado esta quinta-feira, mostram que, no panorama geral, embora a criminalidade violenta mantenha uma trajectória descendente, para as mulheres o país continua a ser um dos mais violentos do mundo.
No ano passado foram registadas 83.988 violações e quase nove em cada dez tiveram mulheres como vítimas – este crime registou um aumento de 6,5% face a 2022 e atingiu o valor mais elevado desde 2011.
Do número total de violações, 76% foram contra pessoas vulneráveis, que a lei brasileira define como vítimas com idade inferior a 14 anos ou incapazes de consentimento por várias razões, seja deficiência ou doença. Mais de 52% das vítimas de violação no Brasil são negras.
De um modo geral, as várias formas de violência contra as mulheres subiram no ano passado, com destaque para a violência doméstica (9,8%), o stalking (34,2%), a importunação sexual (48,7%) e a violência psicológica (33,8%).
O Brasil registou 1467 femicídios, um crescimento de 0,8%, e em mais de 80% dos casos o autor do homicídio era o actual ou um ex-companheiro da vítima. Mais de 60% das vítimas eram negras.
A directora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, responsável pela recolha e tratamento dos dados, avisa que “há subnotificação, porque alguns estados não classificam adequadamente os femicídios”.
A subida dos dados de violência contra as mulheres tem uma relação entre si. “Se a mulher está apanhando mais, está sendo mais ameaçada, sofrendo mais violência psicológica, sofrendo mais stalking e procurando mais a Justiça e a polícia para obter medidas protectivas, infelizmente é esperado que ela morra mais", observa a especialista.
A socióloga Isabella Matosinhos, autora de um texto incluído no relatório, nota que “a violência contra a mulher foi normalizada na sociedade”. “Ainda que o lar e as relações domésticas e afectivas componham o cenário de maior insegurança para a mulher, o ódio ao género não é restrito ao lar, está na nossa sociedade como um todo”, observa Matosinhos, apelando à concepção de políticas que previnam este tipo de violência.
Ainda na véspera da apresentação destes dados, o Presidente Lula da Silva teceu declarações que parecem cair que nem uma luva no processo de normalização da violência contra as mulheres no Brasil.
Ao comentar um estudo que apontava uma relação entre o aumento de queixas de violência doméstica no dia de jogos de futebol, Lula disse ser “inacreditável” para, de seguida, fazer uma piada. “Se o cara é corintiano, tudo bem, como eu. Mas eu não fico nervoso quando [a equipa] perde, eu lamento profundamente”, afirmou o Presidente, conhecido adepto do Corinthians, de São Paulo.
O debate sobre os direitos das mulheres tem estado na ordem do dia no Brasil por causa da proposta legislativa apresentada pelos sectores mais conservadores do Congresso para equiparar o aborto após as 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo em casos de violação ou malformação do feto. A proposta motivou fortes protestos populares e a iniciativa está, por agora, posta de lado.
Menos homicídios
Ao mesmo tempo, mantém-se a tendência de queda da criminalidade violenta em geral no Brasil, onde foram registados 46.328 homicídios no ano passado, o valor mais baixo desde 2011, quando se começaram a compilar estes dados. O país observa uma queda mais ou menos contínua do número de mortes violentas desde 2017.
As regiões mais violentas do país, sobretudo no Norte e no Nordeste, coincidem com aquelas onde a actividade dos grupos de crime organizado é mais intensa, segundo os autores do relatório.
Houve mais de seis mil homicídios cometidos por agentes policiais, um número idêntico ao do ano anterior, mas numa década essa estatística subiu quase 200%. O Brasil mantém-se como um dos países, em todo o mundo, onde a polícia mais mata, superando os EUA, por exemplo.
"É óbvio que você tem violência que está relacionada com conflitos de grupos criminosos e com o narcotráfico, mas também é muito evidente que a própria polícia está produzindo um nível de violência que é uma opção que eles entendem, aparentemente, como legítima para combater o crime", disse Bueno.
Em 2023, as três cidades mais violentas do Brasil foram Santana, no Amapá, Camaçari e Jequié, ambas na Bahia.