Algarve em Lisboa

A leitora Maria Goreti Catorze escreve sobre as chaminés de um edifício em Lisboa que a transportaram para a região mais a sul do país.

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Rua da Junqueira, Lisboa MARIA GORETI CATORZE
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Ia a passar na Rua da Junqueira, como passo tantas vezes, quando reparei nas chaminés algarvias no cimo do telhado. Para quem não sabe onde fica, a Rua da Junqueira é uma artéria lisboeta, pertencente à freguesia de Alcântara, paralela ao rio Tejo, conhecida pelos seus belos palácios e circundada por antigas fábricas e bairros proletários. As fábricas fecharam, os bairros perderam os operários, os palácios tornaram-se decadentes. Só o rio continua cintilante atraindo os olhares de quem por ali passeia fazendo da zona ribeirinha uma via de ligação aprazível entre Belém e a baixa pombalina.

Ali muito perto, está o pilar 7 da Ponte 25 de abril: liga a capital à margem sul, que antigamente era chamada de «a outra banda». O pilar 7 alberga um museu interessante, onde se podem ver projectos de pontes bem diferentes da actual. São mais românticas do que esta réplica da ponte de São Francisco (Califórnia). É sempre bom sonhar. O pequeno museu convida a isso mesmo, ao sonho de uma ponte diferente, mais baixa e harmoniosa. Não duvidem de que isso mudaria a silhueta de Lisboa.

Arrepiemos caminho porque este texto não é sobre Alcântara mas sobre o Algarve transportado para um casarão de Lisboa por intermédio de quatro chaminés: duas a duas, fazem fronteira com os prédios vizinhos. Não deixa de ser curioso, ambos os nomes têm origem árabe (al-Gharb al-Ândalus; al-qantara)…

Já não vou ao Algarve há muitos anos. Fala-se nele pelas melhores e piores razões. A verdade é que ouço as notícias e não sinto vontade de lá voltar. Às vezes temos medo de enfrentar certas mudanças porque sentimos a felicidade presa nas pequenas memórias. Foi assim que José Saramago chamou ao seu livro de memórias, As pequenas memórias, as que constituem a grande pátria da juventude.

Estas chaminés trazem-me, pois, boas recordações. Foram uma atracção turística do passado. Duvido que actualmente alguém vá ao Algarve para apreciá-las. Havia miniaturas em bibelot no tempo em que Portugal era uma colecção de preciosidades regionais. Tenho uma dessas recordações em casa, de forma rectangular (as da rua da Junqueira são cilíndricas).

Nesse tempo, também se vendiam caixas de figos secos cobertos por papel celofane amarelo. Lá dentro os figos dispunham-se em forma de peixe. Quanto aos bolinhos de amêndoa moldados em feitio de frutos nunca desapareceram totalmente das pastelarias. As amendoeiras dos quintais é que deram lugar a urbanizações desinteressantes com jardins relvados cheios de piscinas de aspecto asséptico. Tal como certamente as figueiras e as alfarrobeiras. Para os saudosos da paisagem campestre este é um duro golpe.

Deixemos o campo em direcção ao mar: ao areal de Monte Gordo com as suas conquilhas frescas enterradas na areia. Os turistas apanhavam-nas de madrugada, em dias de maré baixa, para fazerem patuscadas de fim de tarde. Por vezes atravessávamos o rio Guadiana no barco que ligava Vila Real de Santo António a Ayamonte. Ia cheio de veraneantes no convés com os olhos postos na rebentação da água. Depois veio a ponte que transformou o trajecto num passeio abrasador e solitário.

Também recordo o alecrim perfumado de Albufeira. Sempre que encontro alecrim nas sebes lembro-me desse tempo. Por fim vou falar da Fuseta, uma aldeia cortada ao meio pela Rua da Liberdade. No início dessa rua, perto da ria, fica a biblioteca municipal, onde requisitei as obras completas de Stendhal. Lia-as de manhã na praia e de tarde numa varanda com vista para o mar ou numa açoteia rodeada de buganvílias.

Acreditem que foi desta forma inesperada que o Verão algarvio inundou a Primavera lisboeta, através de quatro chaminés rendilhadas a branco, ponto de fuga para um série de lembranças felizes onde se inclui (mais) um verso sábio do Mia Couto: "Se construísse uma chaminé em minha casa não era seria para sair o fumo mas para entrar o céu."

Maria Goreti Catorze

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