A última colónia urbana de peneireiros-das-torres em Portugal pode desaparecer em breve

Colónia de Mértola já foi a maior do país, mas passou de 16 casais em 2021 para sete no ano passado e quatro este ano, com sucesso reprodutor confirmado em apenas três deles.

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Miguel Manso
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Os peneireiros-das-torres de Mértola, que constituem a última colónia urbana da espécie no país, podem estar muito perto de desaparecer, depois de terem decaído de forma acentuada nos últimos três anos. Em 2021, ainda por ali andavam 16 casais, no ano passado foram só sete e este ano existem apenas três com crias confirmadas e mais um cujo sucesso reprodutor não foi possível avaliar. “Para o ano, não tenho por que pensar que não vão voltar, mas nos próximos cinco anos podemos já não ter colónia”, admite Carlos Carrapato, do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

É um problema muito específico desta colónia e que não estará a afectar a restante população de peneireiros-das-torres ou francelhos (Falco naumanni) que, há três anos, contava com cerca de 500 casais no país, 70% a 75% dos quais na Zona de Protecção Especial (ZPE) de Castro Verde. As estimativas mais recentes apontam para que a população nacional se situe acima dos 700 casais.

Rita Alcazar, coordenadora do núcleo de Castro Verde da Liga da Protecção da Natureza (LPN), que tem seguido de perto a espécie há mais de 20 anos, admite que, neste momento, face à recuperação que se viveu durante este século, não tem havido um “acompanhamento tão detalhado” dos peneireiros-das-torres, mas também não há qualquer indício de que exista um declínio visível da espécie. Com excepção da colónia de Mértola. “Infelizmente, é quase um final anunciado, porque não se consegue reverter a questão da falta de alimento em redor da colónia, o que torna muito difícil eles conseguirem sobreviver”, diz a bióloga.

A colónia de Mértola já foi a maior do país, com cerca de 80 casais, mas o declínio da espécie, que se fez sentir de forma intensa na segunda metade do século passado, acabou por a afectar fortemente. A ela e a outras colónias que existiam em cidades e vilas do país. “Se a colónia de Mértola desaparecer, será uma perda, porque estamos a falar de uma espécie que ocorria em muitas cidades e vilas portuguesas. Ela já tinha desaparecido no final do século XX, como a de Castro Marim e outras. Évora tinha uma colónia enorme, nas muralhas, até Beja tinha uma. Havia muitas colónias em meio urbano que foram desaparecendo e não se conseguiu fazer a recuperação”, diz Rita Alcazar.

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Os peneireiros de Mértola voam quilómetros para trazerem um único gafanhoto para as crias Miguel Manso (Arquivo)

As intervenções de recuperação em muralhas e antigos castelos, que taparam as aberturas onde faziam os ninhos, fizeram decrescer os locais para nidificar desta espécie migratória, que passa a Primavera e o Verão por cá, onde se reproduz, partindo depois para África. A juntar a isso, as mudanças na paisagem (sobretudo, agrícola) fizeram diminuir a disponibilidade de alimento. Junte-se a predação e a competição com outras espécies, e a vida não é fácil para estes pequenos falcões. Para os de Mértola, as distâncias que têm de percorrer para conseguirem encontrar um grilo ou um gafanhoto para alimentar as crias serão a causa principal para o seu declínio, mas não a única.

“É uma população que não está a conseguir recrutar animais. Tem de migrar para o Norte de África e há factores que não controlamos [nessa migração]. Há animais que morrem afogados no estreito de Gibraltar, se apanharem ventos contrários. Além disso, tem havido uma contracção do habitat disponível e dois anos seguidos de seca extrema, em que as populações de presas, como gafanhotos ou pequenos roedores, também tiveram um certo declínio, fazem com que a colónia não se esteja a conseguir manter”, diz Carlos Carrapato.

Para que as populações se renovem, é necessário que a taxa de reprodução seja superior a dois, e os três casais de Mértola monitorizados estão mesmo no limite, com uma taxa de 2,1. “Uma colónia com alimento perto consegue taxas de crias voadoras de 2,8 ou 3”, realça o responsável do ICNF.

Colónia de Cuba aumentou

Essa proximidade de alimento pode ser um factor a contribuir para que uma colónia introduzida na zona de Cuba, em 2018, esteja a aumentar. O ICNF controla-a e Carlos Carrapato diz que, depois de se iniciar com sete casais, ela tem já 13. Rita Alcazar também afirma que a população que se espalha pelos campos da ZPE de Castro Verde beneficia de “um habitat adequado e alimentação disponível”, que permite a sua estabilidade ou até uma ligeira tendência de crescimento.

Por lá, os ajustes que podem ser feitos, para garantir que a espécie com estado de conservação “em perigo” no país se mantém, são ao nível dos espaços para nidificar. “O que sentimos é que algumas das medidas feitas há alguns anos, com alguns projectos Life, começam a ficar um bocadinho ineficazes. Precisaríamos de alguns ajustamentos: mexer em caixas ninho que deixaram de estar viáveis e em algumas paredes de nidificação, porque ficaram com cavidades mais abertas e que estão a ser usadas por pombos ou gralhas-de-nuca-cinzenta. É preciso limar algumas medidas para ficarem com uma eficácia maior”, diz.

Mas em Mértola o problema é maior. Além de os bons locais para nidificar não serem muitos, é mesmo a dificuldade em obter alimento que mais prejudica a espécie, com as aves a terem de percorrer vários quilómetros para obter nutrientes.

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Crias dos peneireiros-das-torres de Mértola, numa caixa ninho, fotografadas em 2021 Miguel Manso (Arquivo)

Um problema que está identificado há muito e que se tentou combater, realizando protocolos com agricultores, para que deixassem alguns hectares das suas propriedades com áreas por ceifar e colheitas mais adequadas ao desenvolvimento de alimento para esta e outras espécies. Em 2021 ainda avançou um projecto-piloto, que permitiu, através de um protocolo com agricultores, manter um campo de 30 hectares, a cerca de dois quilómetros da vila, com alimento para os peneireiros. Só que, diz Carlos Carrapato, esses protocolos são sempre limitados a um ano, e com a seca que se abateu sobre as planícies alentejanas, nos dois anos seguintes ninguém os quis celebrar.

O responsável do ICNF compreende os agricultores: “Ninguém queria fazer protocolos, porque a comida não chegava para os animais. Não está aqui uma questão de má vontade, eles estavam a ver os animais com fome. Quando fazemos os protocolos para garantir a conservação da natureza, o que estamos a pedir aos agricultores é para não cortarem as searas até 30 de Julho. Este ano, com pasto por todo o lado, por causa das chuvas, isso poderia não ser um problema, mas se for como no ano anterior, em que já se vinha de um ano de seca, eles perguntam: e o que vou dar de comer ao gado a partir de Maio?”

As profundas alterações da paisagem agrícola da região, com os campos cada vez mais vocacionados para garantir alimento para as manadas de vacas (mudaram as plantações e o tipo de gado), que dão mais lucro aos agricultores, são a principal razão para os peneireiros-das-torres poderem desaparecer de Mértola. “Não gostaríamos que isso acontecesse, mas é uma espécie [cuja conservação é] complicada, que depende de interesses agrícolas”, resume Carlos Carrapato.

Ainda assim, diz Rita Alcazar, esta espécie de morte anunciada da colónia de Mértola não tem de ser o fim da história. “Diria que não é impossível [salvar a colónia], mas é difícil. Teria de se criar uma medida agro-ambiental muito específica, tentar criar algumas áreas de alimentação perto da vila de Mértola, compensando os agricultores para algo que não é muito rentável. Existem alguns campos próximos em que isso seria possível, mas seria preciso um suporte maior para os agricultores, para que a mudança fosse mais rentável.”

O ICNF garante que “estão a ser feitos vários esforços para tentar inverter a tendência de diminuição” da colónia de Mértola, que passam pela “procura de fontes de financiamento para tentar implementar medidas semelhantes às de 2021” e a tentativa de encontrar um local para “a construção de uma ‘parede/colónia’, de forma a manter reprodutores nas proximidades do casco urbano de Mértola”.

Em estudo está ainda a possibilidade de ser instalada na vila "uma jaula de hacking", que possa “receber indivíduos que caem dos ninhos durante as ondas de calor”. Tudo para tentar que Mértola continue a ser uma escolha viável para os peneireiros-das-torres se manterem por lá.