Jeff Goodell: “Atirar tinta a quadros não é activismo eficaz, é uma encenação”

É um dos mais famosos jornalistas a escrever sobre clima. Mas não sabia explicar o calor até ter sentido o seu sopro letal na pele. Em O Calor É Que Te Vai Matar, tudo se torna visceral.

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O calor é o fenómeno natural que mais mata, avisa Jeff Goodell no livro O Calor É Que Te Vai Matar, editado em Portugal pela Lua de Papel OLIVIER HOSLET / EPA
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Naquele dia em Phoenix, no estado norte-americano do Arizona, a temperatura rondava os 46ºC. Jeff Goodell, jornalista e editor na Rolling Stones, e um dos mais reconhecidos repórteres na área do clima, estava a 20 quarteirões do local onde havia combinado uma reunião para uma reportagem. Os transportes públicos demorariam demasiado tempo — a melhor solução, julgou ele, seria caminhar rapidamente até ao ponto de encontro.

Phoenix é uma das cidades mais quentes dos Estados Unidos. É tão quente que o poder local tomou um passo incomum nas políticas de saúde a nível autárquico: decidiu medir o volume de mortes causadas pelo calor extremo naquela região. Antes de decidirem que alguém perdeu a vida na sequência de um ataque cardíaco, os profissionais de saúde têm de ir mais longe e questionar-se: será que a falência do coração foi precipitada pelo calor infernal?

As estatísticas ainda não são perfeitas: há um consenso entre os profissionais de saúde em como os números de morte por calor extremo, mesmo com políticas revolucionárias instaladas na cidade, estão a ser subestimadas. No ano passado, ainda assim, contabilizaram-se cerca de 700 mortes atribuíveis ao calor extremo em Phoenix. Mais do que as mortes causadas por furacões e mais do que as vítimas de tiroteios.

Em 2018, Jeff Goodell também podia entrar para as estatísticas. “Quando cheguei à reunião, estava com tonturas e sentia-me a desmaiar, o meu coração batia com muita força e apercebi-me de que, se tivesse de andar outros 20 quarteirões, estaria em grandes sarilhos”, recordou em entrevista ao Ípsilon.

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Jeff Goodell é jornalista e editor da Rolling Stones, um dos mais reconhecimentos autores de livros e artigos sobre as alterações climáticas. Dedica-se ao tema há 20 anos Matt Valentine

Essa foi a primeira vez que Goodell se apercebeu do “lado pessoal” do tema: “Nunca pensei realmente e nunca me ocorreu, apesar de ter vivido em sítios quentes e tudo isso, que fosse perigoso de uma forma imediata, como um predador. Numa hora ou duas, pode matar-nos nem que seja a fazer uma caminhada.”

Nessa mesma noite decidiu escrever O Calor É Que Te Vai Matar, que foi lançado nos Estados Unidos em 2023 e chegou em Maio às bancas portuguesas, pela mão da editora Lua de Papel. Jeff Goodell passou os anos seguintes a viajar pelo mundo e profundezas dos Estados Unidos, a testemunhar a onda de morte, doença e miséria que o calor extremo está a causar em vários pontos do mundo. Depois, escreveu um livro em que descreve visceralmente como o calor derrete verdadeiramente o organismo humano.

Em entrevista ao Ípsilon, a poucas semanas de estar em Portugal para participar na conferência Book 2.0, promovida pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros de 5 a 6 de Setembro, Jeff Goodell reflecte sobre activismo, ansiedade climática, a vida e a morte. “Aquele episódio fez-me perceber que subestimei completamente os riscos e que não conseguia explicar o que o calor era”, admitiu o autor. “Por isso decidi descobrir e contar ao mundo.”

Há poucas semanas foi notícia a morte de milhares de muçulmanos na peregrinação a Meca por causa do calor. Quão surpreendidos devemos realmente estar com notícias como esta?
Infelizmente, não estou nada surpreendido e não deveríamos estar. Sabemos que o nosso mundo está a ficar mais quente e que este calor crescente é cada vez mais perigoso. Quando se tem milhares de pessoas numa peregrinação sob este calor extremo, actualmente é natural que haja vulnerabilidade e isso vai ter um custo.

Para mim, uma das coisas que essas notícias trazem à tona é quão desadequado o nosso mundo é ao clima actual. O nosso mundo foi construído para um clima que já não existe. Isso aplica-se às nossas cidades e às infra-estruturas urbanas, mas também se aplica à realidade cultural e religiosa.

O mesmo acontece com os jogos de futebol no meio do Verão com temperaturas de calor extremo, com o trabalho ao ar livre... Mudou o cálculo das nossas vidas. E o que aconteceu durante o Hajj foi uma ilustração trágica disso mesmo.

Então é uma questão de alheamento à realidade?
Isso, na verdade, tem que ver com o motivo pelo qual eu chamei ao meu livro The Heat Will Kill You First [em português, O Calor É Que Te Vai Matar]. Muita da literatura e das conversas sobre as alterações climáticas são colocadas no futuro, mesmo por pessoas que sabem do assunto e compreendem-no bem. Tende-se a pensar que as alterações climáticas e os seus riscos são algo que vai acontecer a pessoas em lugares distantes ou às gerações futuras. Não se apercebem de que o risco está a acontecer agora.

Por isso é que eu quis dar ao meu livro um título tão abrupto e tão alarmante. Queria torná-lo pessoal. Há um grande distanciamento entre as pessoas e as consequências das alterações climáticas, os riscos do calor extremo.

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O Calor É Que Te Vai Matar chegou a Portugal com a editora Lua de Papel D.R.

Isso é negacionismo, ignorância ou outra coisa qualquer?
Sabe, certamente há muita gente que se limita a dizer: "Sempre esteve calor em Lisboa, sempre esteve calor na Arábia Saudita e isto não é diferente." É claramente verdade que Lisboa sempre foi um lugar mais quente do que Helsínquia, certo? Mas está-se a ignorar o óbvio. Há provas claras em todo o mundo de que estes fenómenos meteorológicos extremos são cada vez mais comuns e a ciência muito sólida diz que a razão pela qual estamos a ter estes fenómenos climáticos mais extremos é porque continuamos a colocar combustível fóssil na atmosfera pela queima desses combustíveis fósseis.

Considera-se um activista?
Essa é uma pergunta complicada. A um certo nível, sim. Escrevo sobre isto porque me importo, porque acho que é a história mais importante do nosso tempo. Acho que o maior desafio que os humanos já enfrentaram é imaginar o nosso mundo à luz desta alteração climática radical que criámos para nós mesmos. Escrevo sobre este assunto porque me preocupo com ele, quero inspirar a mudança e quero fazer com que as pessoas pensem de forma diferente sobre o mundo em que vivem.

Mas não pretendo ser um activista, no sentido em que não sei como organizar politicamente as pessoas. As pessoas perguntam-me muitas vezes o que devem fazer. Na verdade, tudo se resume a fazer aquilo em que se é bom, à utilização das capacidades que se tem. E é isso que sinto que estou a fazer. Sinto que sou um bom jornalista e que sei como contar histórias. Esta é uma história importante. Isto é o que eu posso fazer. Nesse sentido, sou um activista. Estou a fazer isto porque quero inspirar a mudança, mas não sou um activista que sai para a rua e se amarra aos portões da Casa Branca ou atira tinta à Mona Lisa ou spray cor de laranja ao Stonehenge.

Qual é a sua opinião sobre essas formas de protesto?
Lá está, eu não me considero um especialista em activismo político, por isso não sei o que funciona. Uma vez falei com o Presidente Obama sobre isso. O que ele me disse basicamente foi: "Tens de me obrigar a fazê-lo.” Por outras palavras, ele precisava de sentir que as pessoas estavam com ele para inspirar a mudança.

Pessoalmente, penso que pintar o Stonehenge de laranja ou atirar tinta a quadros num museu não é um activismo eficaz. Acho que é apenas uma encenação. Ir a reuniões do G7 ou protestar nas ruas, sendo preso mesmo que pacificamente, é legítimo e útil. Mas acho que pintar monumentos diminui a causa e o objectivo.

Então, afinal, o que é o calor?
A melhor maneira de pensar nisso é pensar em vibração. Quando algo está mais quente, as moléculas vibram mais rápido. Por exemplo, agora estou a segurar uma chávena de café na minha mão e consigo sentir o calor nos meus dedos. O que está a acontecer é que o café está a fazer com que as moléculas na chávena vibrem mais rapidamente. Eu consigo captar a vibração na ponta dos dedos e isso é registado à medida que o calor faz com que as moléculas nas pontas dos meus dedos se movam mais rápido.

Quando se fala de um mundo mais quente, uma maneira de pensar sobre isso é pensar num mundo que está se está a mover mais rápido e tem um metabolismo mais elevado, mais agitado.

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Dois manifestantes do movimento "Just Stop Oil" atiraram sopa de tomate ao quadro "Girassóis" de Vincent Van Gogh, de 1888, em Londres em 2022 EPA/JUST STOP OIL

Conheceu muitas histórias poderosas sobre o impacto do calor extremo. Qual foi a mais impactante para si?
A da família que menciono nas primeiras páginas do livro. É a história de uma família que sai de casa para uma caminhada num dia de sol na Califórnia. Sabiam que ia estar calor e prepararam-se para isso. Mesmo assim, aquela família perfeitamente saudável, marido e mulher com 30 e tal anos, 40 e poucos, com uma criança de um ano e meio e um cão, acaba morta por insolação num trilho umas seis, sete horas depois.

É uma história terrivelmente comovente, até foi difícil de escrever. Incluí-a porque resume dois pontos importantes. O primeiro é que não são apenas as pessoas obviamente vulneráveis que se metem em sarilhos com o calor, como as pessoas mais velhas ou com problemas circulatórios. Nas circunstâncias erradas, o calor pode matar qualquer pessoa.

E outro ponto é o facto de ter sido um acidente. Isso deixa bem clara a rapidez com que tudo pode acontecer: mesmo as pessoas que pensam que compreendem os riscos do calor, na verdade não compreendem assim tão bem.

As descrições que faz da forma como o calor actua no organismo são muito gráficas. Foi propositado?
Aqui nos EUA compararam o meu livro a um livro de terror e considerei um elogio. Queria que tivesse um lado visceral e que o leitor soubesse o que acontece com o seu próprio corpo durante o calor extremo, para compreender porque é tão particularmente perigoso. Nós ouvimos falar de exaustão pelo calor ou de insolação, mas não sabemos o que isso significa. É apenas um termo abstracto. E eu queria torná-lo literalmente visceral. Queria mesmo levar as pessoas para dentro do seu próprio corpo à medida que a temperatura corporal aumenta e os órgãos internos, a estrutura de uma pessoa, começa a derreter.

Que números existem sobre esse tipo de morte?
Esta é uma questão altamente controversa. Por duas razões: uma é que as pessoas que se preocupam com esse ponto começaram a acordar para este tema há pouco tempo. Não nos importávamos tanto com isto há coisa de dez anos. E depois porque a morte por insolação não é como os outros tipos de morte.

Porquê?
Se morrer com um tiro há um ferimento. Quem a for examinar verá que uma bala foi o motivo da morte. É mais difícil ver que as pessoas morrem devido ao calor extremo porque não há um ferimento de bala. As pessoas morrem porque os corações falharam ao baterem demasiado depressa. Os responsáveis acabam por escrever nas certidões de óbito que se morreu com um ataque cardíaco ou uma insuficiência cardíaca, mas a razão pela qual isso aconteceu é porque se esteve numa sala durante sete horas sob temperaturas de 42ºC e o coração desistiu.

Quando se tenta obter estatísticas da mortalidade por calor, encontram-se números artificialmente baixos que, segundo os especialistas em saúde pública, estão errados. Mas um estudo bem conhecido e bem estabelecido publicado na The Lancet mostrou que, em 2020, houve 400 mil mortes por calor extremo em todo o mundo.

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Um sinal alerta para o calor extremo quando os turistas entram no Parque Nacional do Vale da Morte, na Califórnia, EUA REUTERS/Steve Marcus

Como é que se compara com as mortes por outras causas?
Posso falar da realidade nos Estados Unidos: as mortes por calor aqui ultrapassam o número de pessoas que foram mortas por armas de fogo. Mesmo comparando com eventos relacionados ao clima, nada mata mais do que o calor.

Uma das cidades mais quentes e que tem melhores estatísticas de saúde aqui nos EUA é Phoenix. E a estimativa de mortes [por calor] em Phoenix no ano passado foi de 700 pessoas — o que ainda deve ser uma grande subestimação, mas é um número um pouco mais fiável. Essas 700 mortes já são dez vezes mais do que todas as pessoas mortas nos Estados Unidos por furacões. Na Europa, em 2022, houve um artigo publicado na Nature em que se estimaram 60 mil mortes relacionadas com o calor entre Maio e Dezembro na Europa.

O que é que Phoenix está a fazer de diferente para medir essa mortalidade?
A cidade percebeu que é uma das cidades com maior risco e está a tentar implementar políticas e aumentar a consciencialização sobre isso. A autarca de Phoenix tem sido bastante progressista quanto a isto e tem havido muito trabalho com os gabinetes de saúde pública para obter números mais precisos. Eles incentivam os médicos legistas a investigarem padrões para não deixarem passar qualquer morte por calor.

Porque é que não se faz o mesmo noutros lugares?
Há três razões. Uma é que é caro e requer financiamento. Em segundo lugar, requer um Governo que se preocupe muito com conhecer esta realidade. E a terceira razão é que este não é o tipo de informação que a maioria dos políticos de qualquer cidade está realmente ansiosa por saber.

A verdadeira solução para o calor extremo é travar as alterações climáticas. Mas quanto tempo é necessário, depois de se parar as emissões de carbono, para que isso aconteça?
É realmente importante sublinhar que, até chegarmos às zero emissões de carbono, até deixarmos de colocar dióxido de carbono na atmosfera — o que, na melhor das hipóteses, talvez aconteça em 2050 — o planeta vai continuar a ficar mais quente.

Quando chegarmos a esse nível, o calor mantém-se onde está. Não arrefece e volta a ser o que era. Não é como a poluição atmosférica tradicional, que se dissipa. Estamos a criar, para todos os efeitos, um mundo permanentemente mais quente à escala do tempo humano.

Como é que gere psicologicamente esse sentido de urgência, principalmente depois de ter investigado histórias como as que surgem no livro?
Há 20 anos que escrevo sobre isto e sinto-me incrivelmente inspirado.

E optimista?
Não sei se usaria essa palavra. É verdade que vejo muitas perdas e muito sofrimento, vejo muita tragédia, mas também vejo muitas pessoas inspiradas que estão a lutar arduamente por um mundo melhor. Isto dá-nos uma oportunidade de repensar o nosso mundo — porque vamos repensar o nosso mundo, quer queiramos quer não. Quer se acredite ou não nas alterações climáticas, elas estão a acontecer. E vão mudar a forma como obtemos a nossa energia, como obtemos os nossos alimentos e como construímos as nossas cidades.

Penso que existem enormes oportunidades para estragar tudo, para fazer as coisas mal e piorar a situação, transformando o mundo numa espécie de futuro Mad Max. Mas penso que há oportunidades fantásticas para o melhorar. Para tornar o mundo mais justo e mais hospitaleiro.

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Um homem carrega uma ovelha às costas durante o incêndio na Boa Vista, distrito de Leiria, em 2022 EPA/PAULO CUNHA

Tem algum novo livro em mente?
Tenho algumas ideias, mas ainda não estou preparado para falar sobre elas. A minha mulher não gosta que eu diga isto, mas é como casar. É como se olhássemos para a pessoa e pensássemos: será que quero acordar ao lado dessa pessoa durante os próximos cinco anos da minha vida? Lido bem com isso ou é apenas um romance rápido que foi divertido? Escrever um livro é muito difícil e passa-se por todos os tipos de momentos difíceis. Ainda não cheguei a esse ponto.

Ainda está em lua-de-mel com O Calor É Que Te Vai Matar.
A ter encontros sem compromisso com muitas, muitas ideias.