Uso de crianças-soldado numa “escala sem precedentes” no Leste do Congo
Relatório da ONU fala em menores de 10 e 12 anos que engrossam a fileira dos grupos armados com o beneplácito dos governos da R.D. Congo, do Ruanda e do Uganda.
Numa altura em vigora um cessar-fogo de duas semanas no Norte-Kivu, um relatório das Nações Unidas publicado esta semana, além de confirmar a ingerência de Ruanda e Uganda no conflito no Leste da República Democrática do Congo (RDC), vem alertar para o aumento do número de crianças-soldado no conflito: “Todos os actores armados recrutam e usam crianças nos confrontos a uma escala sem precedentes.”
Segundo os membros do Grupo de Especialistas na República Democrática do Congo, coordenados por Mélanie De Groof, “as crianças são as mais afectadas pela guerra, nomeadamente em resultado do recrutamento por grupos armados”. Nos primeiros três meses do ano, 40% de todas as violações graves aos direitos humanos registadas nas províncias orientais da RDC foram contra crianças e, dessas, 80% foram por recrutamento e utilização de crianças em combate.
“O recrutamento e uso de crianças atingiram níveis alarmantes no princípio de 2024”, lê-se no relatório. “As provas recolhidas pelo grupo confirmam o aumento do recrutamento, incluindo de crianças, em 2023 e 2024, tanto pelo M23 como pelas FDR [Forças de Defesa do Ruanda] e por grupos armados da coligação Wazalendo [milícias locais que ajudam o Exército congolês a combater o grupo armado M23].”
“O M23 raptou sistematicamente homens, adolescentes e crianças nos territórios conquistados, predominantemente nos territórios de Rutshuru e Masisi. Centenas de homens e rapazes com idades compreendidas entre os 10 e os 12 anos foram raptados nas zonas rurais, enquanto trabalhavam nos campos, individualmente ou em grandes grupos – tal como confirmado por vários ex-combatentes do M23 que foram recrutados nessas circunstâncias”, explica o documento da ONU.
O grupo apoiado pelo Exército ruandês e que goza do beneplácito das autoridades ugandesas para usar o seu território, como confirma o Grupo de Especialistas, também recruta nos campos de refugiados congoleses no Ruanda e no Uganda. “Fontes dos serviços secretos, ex-membros das FDR e cinco crianças recrutadas em campos de refugiados confirmaram que estavam a decorrer actividades em quase todos os campos de refugiados no Ruanda.”
Dos mais de mil recrutas treinados na principal base militar do M23, Tchanzu, no Norte-Kivu, pelo menos 20% eram menores, diz o relatório. Os menores com 15 anos ou mais são enviados para combater na linha da frente, os mais novos são usados para fazer recados ou servirem de ajudantes ou criados dos comandantes até terem idade suficiente para ir lutar.
Também as milícias locais recorrem a crianças para aumentar as suas forças, com o beneplácito do Governo do Presidente congolês, Félix Tshisekedi. “Até à data, o Governo não tomou medidas eficazes para garantir a libertação imediata de todas as crianças com menos de 18 anos destes grupos e para prender os comandantes responsáveis por tais práticas, apesar de ter sido informado da utilização de crianças-soldado pelos grupos Wazalendo”, declaram os especialistas.
O chefe de Estado congolês usou, aliás, o carácter excepcional da situação para justificar a prática e não a condenar, numa entrevista no final de Março ao Monde. “Deixem de olhar para esta situação como normal. Estamos num mundo irreal. Alguns deles viram os pais serem violados, outros foram massacrados ou decapitados”, disse Tshisekedi. “Deixem de olhar para as coisas a partir do Ocidente, que já começa a irritar os africanos. Julgam-nos, dizendo que existem normas internacionais, mas eles estão num tal estado de espírito que já não obedecem a nada, incluindo a nós.”