Confissões de um psicólogo perante a Inteligência Artificial

Quando alguém pensa que podem pensar por ele, entregou o jogo.

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Tenho escutado atentamente as discussões em torno das tecnologias inteligentes, e em particular sobre a ferramenta de Inteligência Artificial que gerou uma vaga de fascínios e inquietações: o ChatGPT. Nisto, para já, é igual a todas as outras mirabolâncias da nossa capacidade tecnológica: fascínio e admiração, inquietação e temor de fim de mundo.

Quando eu era criança, corriam ainda os anos 60, muitos disseram que a televisão, brutal novidade à época, destruiria a família. Não destruiu, embora haja boas razões para pensar que influiu ativamente na queda dos índices de natalidade. Com a multiplicação de ecrãs que grassa por todo o lado, segundo os mesmos tementes do apocalipse, poderemos estar à beira da extinção da espécie? Veio então a febre do vídeo, que iria acabar com as estrelas de rádio. Como se enganaram The Buggles! Depois veio a Internet, que também ia acabar com já não sei bem o quê; em seguida as redes sociais, que não só não acabaram com nada como fizeram começar muita coisa.

A tudo isto a psicologia foi chamada. Nesses anos éramos ainda poucos, hoje somos quase 30.000. Chamam-nos a praticamente todas as questões do debate público, o que não tem nada de extraordinário posto que em tudo o que fazemos estão envolvidos o comportamento e o psiquismo humanos. Alguns psicólogos vão mesmo onde a ética aconselha a não estarmos, como a programas de entretenimento nas televisões, fazendo intervenções psicológicas em direto para ajudar famílias em crise ou para emparelhar afetos amorosos de gente à procura de par… Pergunto-me por isso com frequência – até enquanto professor de um curso responsável pela formação de futuros psicólogos – se está a psicologia a caminhar na direção certa para dar resposta ao pedido social acrescido que está a acontecer. A interpelação lança-me num exercício confessional – estranha confissão no entanto, pois que a partilho no momento em que a faço com os muitos que a quiserem ler.

A psicologia já não me interessa apenas como disciplina científica para a produção de conhecimentos sobre o indivíduo. Se for só isso, é curta. Interessa-me cada vez mais que o conhecimento gerado seja um conhecimento de si, isto é, um conhecimento transformante de nós próprios, aplicável à nossa existência e capaz de nos acrescentar enquanto pessoa. E não é essa a direção que privilegiam nem a investigação nem a prática formativa dos futuros psicólogos: o conhecimento é produzido e veiculado aos estudantes como uma exterioridade, isto é, o sujeito psicológico é reduzido a modelos, constructos e instrumentos de avaliação que seriam exteriores à nossa própria pessoa. O objeto da psicologia seria isso mesmo: um objeto, portanto separado do sujeito que o investiga, portanto separado também dos que ensinam e dos que aprendem.

Reconheço que a afirmação é perigosa, se não dissermos de imediato que não é sempre assim – toda a generalização sofre deste problema, e portanto o que estou a dizer enuncia apenas tendências. Prossigamos: formam-se assim técnicos de psicologia, que constroem e aplicam instrumentos de avaliação e programas de intervenção. Nas sociedades meritocráticas tudo deve obedecer a métricas, sem as quais não podemos escalonar os indivíduos; e tudo deve ser suscetível de uma intervenção que optimize. Quantificação, optimização e, já agora, inovação, vocábulo mágico que não acrescenta mas tem eficácia simbólica.

À saída das faculdades não deveríamos ter só técnicos de psicologia ou investigadores em potência, mas indivíduos em que os saberes psicológicos adquiridos fossem interpelantes de si próprios e lhes tivessem exigido transformações pessoais. Estaríamos assim perante um conhecimento de si na sociedade do conhecimento. Poderemos construir toda a sofisticação da Inteligência Artificial, mas isso não resolve nenhuma das angústias que continuam a alimentar o rio desta nossa incompreensão pelo mais profundo do que somos. Não desocultam as cavernas que, no mais fundo da noite, brotam nos pesadelos dançando no nosso medo, não desocultam o que nos faz infelizes mesmo quando nunca em nenhum outro momento da história tivemos tantos recursos e tão à mão.

Deixem vir todas as inteligências artificiais, deixem-nas vir casa adentro e veremos como não tocam nem ao de leve em todas as nossas emoções naturais. Continuaremos o animal amedrontado perante o seu destino, olhando glauco para o insondável do que aí vem. Que faz um animal amedrontado? Foge. O animal humano foge para a frente: inventa guerras, constrói planos para habitar Marte, faz computadores mais potentes, entrega aos big data aquilo que já está incapaz de equacionar, porque desistiu de si e entregou às máquinas, ilusoriamente, a inteligência. Como as crianças, que brincam descontraídas porque sabem que um adulto as vigia e decide por elas.

No 1984, de George Orwell, a distopia era o Big Brother is watching you; ao ponto a que chegou a IA, o Big Brother não só nos observa, mas tememos que pense e crie em nosso lugar. Quando alguém pensa que podem pensar por ele, entregou o jogo. Em fevereiro último, no Correntes d’Escritas, ouvi Lídia Jorge dizer que vivemos um paradoxal tempo de explosão da inteligência e de declínio do pensamento. As universidades já têm uma grande capacidade instalada de inteligência, a IA virá ainda em seu reforço; precisamos agora que não descurem a capacidade instalada no que toca ao pensamento.

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