Os bastidores do “quase milagre” que é abrir uma torneira e encontrar água

O último metro da barragem da Ribeira do Paul chega para abastecer a população em Agosto. Mas, será preciso usar mais captações secundárias. Visitámos o caminho que a água faz até às torneiras.

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A barragem do Paul, em Mosteiro de Fráguas, é o ponto de partida da água gerida pela Águas do Planalto que abastece cinco concelhos: Carregal do Sal, Mortágua, Santa Comba Dão, Tábua e Tondela Jose Sergio / PUBLICO
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Um enorme lago estende-se para lá do horizonte, acomodado entre montes verdejantes que se reflectem na água como num espelho. Só os sinais da estação do ano, com a fina camada de pólen depositada à superfície e os lentos passeios dos achigãs debaixo dela, vão perturbando a transparência da água. E só o murmúrio constante das máquinas ao longe quebra a calma deste habitat e denuncia o que realmente se passa nas profundezas desta barragem.

Esta é a Albufeira da Ribeira do Paul, uma barragem de aterro com um volume de 3000 hectómetros cúbicos criada na bacia hidrográfica do rio Mondego, na pequena povoação de Mosteiro de Fráguas, concelho viseense de Tondela. Há aqui tanta água que só o último metro deste lago artificial chegava para cobrir as necessidades hidrológicas de quase 70 mil pessoas no mês de Agosto inteiro.

E cobre mesmo — isso e muito mais, mas com cada vez mais dificuldades, sobretudo nos meses mais quentes. É que esta albufeira, operacionalizada pela Águas do Planalto, integrante do Grupo Aquapor, é o ponto de partida para a longa caminhada que a água percorre até chegar às torneiras das mais de 62 mil pessoas que vivem nos municípios de Carregal do Sal, Mortágua, Santa Comba Dão, Tábua e Tondela.

“As pessoas, quando abrem a torneira e vêem a água a cair, nem se apercebem do truque de magia a que acabaram de assistir”, observa Paulo Oliveira, presidente do conselho de administração da Águas do Planalto e um dos responsáveis da concessionária que desvendaram ao PÚBLICO como funcionam os bastidores da captação, tratamento e distribuição da água: “Muitos de nós não fazem a mínima ideia de como é que a água chega às nossas torneiras, nem a quantidade de tecnologias e processos que são necessários para a utilizarmos de forma segura.” Por isso, fomos descobrir.

Como funciona uma barragem

Mesmo no meio do lago, no extremo de um passadiço, começa a ciência dos caminhos da água: há uma torre submersa com 25 metros de profundidade que tem três pequenas janelas de observação. São, no fundo, miradouros que permitem aos técnicos tomar decisões sobre que destino dar à água da albufeira, que se estratifica de acordo com a temperatura.

De dia, a água mais superficial tende a estar mais quente porque aquece graças ao calor que recebe à boleia dos raios solares. De noite, como a noite é muito fria, isso pode inverter-se e as camadas mais elevadas podem tornar-se mais frias do que as mais profundas.

Quando isso acontece, como a água mais quente é menos densa e tende a subir sobre as camadas mais frias, o lago entra num movimento de convecção — e, à conta disso, os sedimentos depositados em profundidade podem subir a reboque da água fria. Para localizar essa poluição, as janelas são abertas para descobrir onde está a camada de água com melhor qualidade, por estar menos turva e com menos sedimentos. Essa água é bombeada para a estação de tratamento, enquanto parte das camadas mais poluídas são conservadas ou então libertadas para a ribeira.

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Um passadiço permite visitar uma zona mais central da Albufeira da Ribeira do Paul, onde fica uma torre de observação submersa com 25 metros de profundidade José Sérgio

Ora, a água chega aos enormes reservatórios da estação de tratamento, a cerca de 1,3 quilómetros da albufeira, através de um jogo conjunto entre o sistema elevatório e um reservatório de ar comprimido. Num pequeno anexo a jusante da albufeira, há três bombas capazes de elevar 450 metros cúbicos de água cada uma. Funcionam sempre de modo alternado: quando duas delas estão a bombear água para a estação de tratamento (normalmente durante oito horas à noite e quatro de dia, num esforço para poupar nos custos de energia), a terceira fica de reserva.

Vamos às contas: os 900 metros cúbicos de água que estas bombas atiram para a estação de tratamento a cada hora correspondem a 900 mil litros. É o suficiente para que mais de 1200 pessoas possam seguir à risca as recomendações das autoridades de saúde e bebam dois litros de água todos os dias durante um ano. Ainda que a água tenha muitos outros usos.

São números impressionantes, mas têm um senão: se, por algum infortúnio, as bombas pararem de funcionar de repente, a localidade de Mosteiro de Fráguas fica sujeita a um verdadeiro tsunami com água que, deixando de estar impulsionada, volta para trás ao sabor da gravidade. É precisamente para evitar um desastre dessa natureza que se instalou o reservatório de ar comprimido, que funciona como um amortecedor que trava a velocidade da água e contém o seu regresso à casa partida.

Haver água pode ser “quase um milagre”

Apesar destas redundâncias, há dias em que abrir uma torneira e encontrar água limpa para lavar as mãos é “quase um milagre”, assegurou José Ferreira dos Santos, um dos administradores da concessionária. Em 2017, quando os incêndios florestais assolaram quase 540 mil hectares ao longo do ano, 88% dos quais só nas regiões Norte e Centro do país, a qualidade da água na Albufeira do Paul podia ter ficado comprometida: uma camada de cinzas varridas pelo vento para esta região, também ela afectada pelos fogos, depositou-se na superfície dos 3000 hectómetros cúbicos de água que abastecem a população.

As consequências foram de oito a oitenta. Primeiro, faltou a água: naquele ano registava-se uma das secas meteorológicas mais gravosas e abruptas de que há registo em Portugal. A 31 de Outubro de 2017, pouco depois de o país assistir a alguns dos maiores e mais mortíferos incêndios florestais da sua história, 25% do território estava em seca severa e 75% em seca extrema. Tondela não foi excepção.

Mas, depois, surgiu o problema contrário: havia água a mais. Quando a precipitação regressou em peso, caindo em terrenos fragilizados e despidos da flora que os protegia, o solo tinha perdido capacidade de absorver tanta chuva. O percurso que a água fazia ao longo de um mês, desde o topo das serras até à albufeira, passou a demorar meros minutos. Não só chegava mais poluída, por causa das enxurradas que arrastavam areias consigo, como em quantidades que a barragem não conseguia suportar.

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No pior cenário possível, com esta conjugação de factores, haveria 62 mil pessoas à beira da sede, com a pouca água à sua disposição poluída por cinzas e terra, mas em risco de ver as suas vidas inundadas por chuvas torrenciais poucas semanas depois de o fogo as ter ameaçado. Só não foi assim porque a engenharia da Albufeira do Paul está repleta de redundâncias para manter o sistema activo — mesmo quando tudo se vira contra ele.

Uma delas é o açude da Levadinha, uma cobertura que se estende sobre a água para assegurar a sua qualidade. Quando a cinza dos incêndios se deposita na água, as camadas mais superficiais e contaminadas são desperdiçadas, abrindo as comportas para que elas avancem em direcção ao rio. Assim que essa poluição é eliminada, o açude é accionado e a qualidade da água fica protegida.

Outro truque tecnológico ao serviço da Águas do Planalto é o sistema de backup que funciona como plano de segurança nos dias em que todas as gotas contam. Pouco depois de a empresa ter sido constituída, aquando do concurso público para a concessão do serviço de abastecimento e distribuição, todo o sistema foi modernizado para atenuar perdas e desvios de água. Mas algumas captações, sendo menos eficientes do que a tecnologia mais recente, foram mantidas como plano B.

Quando se regista um ano seco, com um Inverno com pouca chuva ou ondas de calor que aumentem o consumo de água para lá do expectável, as nascentes utilizadas habitualmente podem não chegar. Por isso, nesses casos, recuperam-se as captações e as estações antigas — que, estando activas e em constante monitorização, permanecem a maior parte do tempo em standby.

Actualmente, com o sistema moderno a assegurar 90% a 100% das necessidades hidrológicas da população, as captações de backup só costumam ser accionadas nos períodos de pico de consumo no Verão, que costuma ocorrer em Agosto ou quando se registam grandes incêndios e temperaturas muito elevadas. “Ligamo-lo por precaução quase todos os anos, mas nota-se muita diferença”, explica ao PÚBLICO o director técnico da Águas do Planalto, Carlos Mesquita: “Em 17 anos desta forma de funcionamento, nota-se bastante que os últimos anos têm sido mais agressivos e temos precisado mais das captações secundárias.”

Quando o problema é o contrário, e se verifica um excesso de água, a solução é outra: para evitar que ela galgue a barragem e inunde as vizinhanças da albufeira, comprometendo a integridade do núcleo de argila que a sustenta, abrem-se os chamados descarregadores, que deixam a água passar para a ribeira. O barulho ensurdecedor que produz e a força com que o jacto é cuspido por um enorme cano na base da barragem ilustram bem a eficácia deste sistema: em apenas dez segundos descarrega-se mais água do que uma pessoa consome ao longo de um ano inteiro.

Um banho de químicos

O primeiro ponto por onde a água da barragem passa quando chega à estação de tratamento é a cascata de oxidação, uma estrutura metálica de um laranja enferrujado, pontilhada de manchas pretas, por onde os repuxos escorregam ao longo de uma escadaria. Aqui faz-se a oxidação do ferro e do manganês presentes naturalmente na água, explicou ao PÚBLICO o técnico Leandro Costa: “A água cai aqui e emulsiona-se com o ar. Quando o ferro dissolvido apanha o oxigénio do ar, oxida e precipita-se, daí a cor laranja. O mesmo acontece com o manganês e é o que origina as manchas pretas.”

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O nível de turvação da água da albufeira é inferior ao exigido por lei já após o tratamento José Sérgio

Esse é só um passo de uma longa caminhada para tornar esta água potável. Antes de chegar à rede, ela é injectada com ozono (obtido através de oxigénio que é transformado no chamado ozonizador) para destruir algas, bactérias e outros microorganismos presentes na água. Se, no processo de criação de ozono, for libertado oxigénio a mais para o meio ambiente, ele é destruído por uma chaminé — o destruidor catalítico.

A seguir, faz-se a remineralização da água e recupera-se o equilíbrio de cálcio e magnésio através da introdução de dióxido de carbono e de leite-de-cal, ou seja, hidróxido de cálcio misturado com água. O dióxido de carbono baixa o pH da água, enquanto o leite-de-cal volta a subi-lo — um processo necessário para reintroduzir os sais na água e para subir a sua alcalinidade. Se assim não for, a água torna-se demasiado ácida e vai corroer ao longo do tempo as condutas de ferro por onde é encaminhada em direcção à casa dos clientes.

Quem observar de perto esta água não diria que são necessários tantos passos para a limpar. Parece tão cristalina que apetece bebê-la mesmo quando ainda está na albufeira. Parece e é: o nível de turvação desta água — medida em Unidades Nefelométricas de Turvação (NTU), uma medida para as partículas em suspensão que tornam a substância menos homogénea — é de 0,5 NTU. O máximo exigido por lei para que a água possa circular e ser consumida por humanos é oito vezes superior a isso: 4 NTU.

Mas o cheiro que paira no ar nesta estação de tratamento comprova que as aparências enganam mesmo. O fedor a estrume vem dos tanques de lama onde se deposita toda a sujidade que é retirada da água após passar pelas duas câmaras de tratamento — uma “de mistura rápida e floculação” e outra “de flotação”, como lhes chama Leandro. Na primeira, introduz-se um coagulante e um floculante, para que toda a sujidade em suspensão na água se agregue em flocos.

Na segunda câmara, injecta-se ar e água em alta pressão para que os flocos produzidos no fundo da câmara subam à superfície e sejam removidos por pontes raspadoras, uma espécie de pás que varrem a superfície da água para a limpar.

E o processo não termina aqui: enquanto os flocos passam por um processo de desidratação, para que todas as gotas de água sejam reaproveitas e entrem no processo de tratamento novamente, a água do flotador passa por uma caldeira de abastecimento para ser filtrada. Como nem toda a matéria é varrida da água com as pontes raspadoras, ela passa por areia para a filtrar um pouco mais: a poluição em suspensão mais resistente fica presa na areia, mas a água escapa pelos ralos no fundo da câmara.

No fim do processo, a água limpa e pronta a consumir fica reservada num gigantesco armazém subterrâneo, enquanto a lama resultante da limpeza vai sendo acumulada num tanque. Apesar da complexidade deste sistema, a água da Albufeira do Paul é limpa o suficiente para que seja preciso um ano, às vezes mais, para que o tanque das lamas fique completamente cheio. Daí vai para aterro porque é inerte.

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O ”big brother” da estação de tratamento

Todo este processo, desde a captação da água na barragem até à sua distribuição pelos cinco concelhos serviços pela Águas do Planalto, é supervisionado através de uma sala que funciona como um quartel-general. Os computadores foram equipados com uma ferramenta de telegestão que permite acompanhar em tempo real o que se passa em todas as condutas e todas as estações elevatórias. Uma parte do sistema diz-se em alta e é a que vai desde a captação até à distribuição nas aldeias e nas vilas. Outra parte do sistema, em baixa, é a que vai até à casa do cliente. Todas podem ser monitorizadas através desta sala no edifício principal da estação de tratamento.

Uma das principais mais-valias deste software é que permite observar todos os níveis de todos os reservatórios, parar ou arrancar as bombas das estações elevatórias ou detectar fugas de água, por exemplo. Foi graças a ele que a Águas do Planalto conseguiu controlar as perdas de água em 16% da quantidade retirada da albufeira, quando a média nacional é de quase o dobro — 30%.

“Muitos municípios perdem mais de 50% da sua água e alguns até perdem mais de 80%”, adiantou ao PÚBLICO o administrador Hugo Martins. As perdas de água da Águas do Planalto não acontecem na estação de tratamento, nem no caminho da albufeira até lá. São sobretudo perdas técnicas, como uma torneira que pinga, uma válvula que não veda bem ou um sistema que está partido.

Uma parte vem também de perdas comerciais, que ocorre quando a água é desviada, roubada, mal facturada ou não é medida pelos condutores volumétricos. Mas a situação já foi mais crítica, contam os administradores do consórcio: “Há uns anos, tivemos uma rede numa aldeia pequena que, antes de ser intervencionada, perdia 86% da água colocada no sistema, em grande parte por causa dessas perdas comerciais”, recordam.

Nessa altura, os 4000 metros cúbicos de água colocados no sistema no mês de Janeiro não bastavam para que toda a gente tivesse água. Agora, 700 metros cúbicos chegam e sobram — tudo graças ao aprimoramento dos mecanismos de controlo e telegestão; e à modernização das condutas. Não podia ser de outra maneira: agora, mais do que nunca, cada gota de água conta para chegar a toda a gente.