Afinal, porque quer a Amazon uma nova norma de compensação de carbono?

A nova certificação de créditos de carbono Abacus, desenvolvida com o apoio da Amazon, está pronta para ser lançada. Ninguém sabe o que pensa Jeff Bezos, cujo Earth Fund sempre apoiou a concorrência.

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O Earth Fund de Jeff Bezos sempre apoiou as normas do ICVCM, mas a sua empresa Amazon acaba de lançar o concorrente Abacus JOE SKIPPER/REUTERS
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A Amazon tornou-se a primeira empresa a aderir a uma certificação alternativa à norma globalmente utilizada para verificação de compensações de carbono desenvolvida pelo Conselho de Integridade para o Mercado Voluntário de Carbono (ICVCM), uma organização sem fins lucrativos financiada em grande parte por nada menos do que Jeff Bezos, fundador e CEO da gigante tecnológica norte-americana.

A nova certificação Abacus, cujo desenvolvimento a Amazon tem estado a apoiar, será utilizada para verificar a qualidade dos créditos de compensação voluntária de carbono através da reflorestação e da agrofloresta. De acordo com a Reuters, a nova certificação poderá permitir ao retalhista online e fornecedor de serviços na cloud ultrapassar a escassez na oferta de projectos de compensação por emissões de carbono (offsets) com certificação de qualidade robusta, permitindo-lhe cumprir a sua meta de reduzir a zero as emissões líquidas de gases com efeito de estufa até 2040 — ou seja, continuando a poluir, mas compensando as emissões com investimento em projectos.

A Amazon desenvolveu o padrão em conjunto com o registo de carbono Verra como alternativa ao padrão desenvolvido pelo ICVCM, o maior consórcio global de grupos ambientais e do sector privado dedicado à validação de compensações de carbono.

A parte estranha desta história é que Jeff Bezos, através do seu Earth Fund — um fundo de 10 mil milhões de dólares que criou para combater as alterações climáticas —, é um dos maiores doadores da ICVCM, tendo investido pelo menos 11 milhões de dólares na ICVCM e na organização irmã Voluntary Carbon Markets Integrity Initiative desde o seu lançamento em 2021.

Além disso, os críticos receiam que esta medida possa gerar confusão num mercado já com vários problemas e comprometer as normas de compensação de carbono. O que se passa, afinal?

O que é o Abacus?

A Verra anunciou pela primeira vez o seu grupo de trabalho com a Amazon para desenvolver o novo selo de qualidade de créditos de carbono em 2022.

A certificação estará disponível dentro de semanas, adiantou a Verra. A Alphabet, a Meta, a Microsoft e a Salesforce afirmaram que planeiam comprar até 20 milhões de toneladas métricas de créditos certificados no âmbito das normas Abacus.

Jamey Mulligan, chefe do departamento de "neutralização de carbono" da Amazon, afirmou numa entrevista que a empresa avaliou e apoiou o trabalho da ICVCM, mas que queria um padrão mais ambicioso. "Queremos garantir que cada investimento de crédito tenha um impacto nas emissões concreto, quantificado de forma cautelosa e verificado", disse Mulligan, que se recusou a comentar se Bezos estava envolvido na decisão da Amazon.

As empresas pressionadas a reduzir as suas emissões têm optado por comprar créditos junto das entidades que desenvolvem projectos de captura de carbono, por exemplo, através da reflorestação, para "compensar" as suas emissões. O mercado de compensações (offsetting) tem encontrado algumas restrições ao seu crescimento devido ao número limitado de projectos que têm conseguido demonstrar as suas reduções de carbono com dados robustos.

Isto não vai causar confusão entre normas?

Pedro Martins Barata, co-presidente do painel de peritos da ICVCM, disse estar preocupado com o desenvolvimento de uma norma alternativa e que espera que o Abacus acabe por ser integrado na ICVCM. "De outro modo, o mercado ficará novamente num estado confuso, em que cada conjunto de empresas escolherá as normas que pretende apoiar e dirá que corresponde a um determinado padrão de qualidade", afirmou.

Martins Barata acrescenta que a ICVCM está a analisar a metodologia da Verra para créditos de compensação de carbono de projectos agroflorestais e de reflorestação e que, se a aprovasse, poderia tornar a certificação Abacus compatível com as normas da ICVCM.

Kelley Kizzier, directora de acções e mercados empresariais do Bezos Earth Fund e membro do conselho de administração da ICVCM, sublinha que a Abacus é complementar e não concorrente da ICVCM, mas não quis comentar o papel de Bezos. "Precisamos de nos concentrar em criar créditos de alta integridade. Há espaço para muitos actores fazerem isso", disse Kizzier.

Compensação ou greenwashing?

O mercado global de créditos para compensação voluntária de emissões de carbono, no valor de dois mil milhões de dólares (cerca de 1,84 mil milhões de euros), tem tido limitações para crescer devido às preocupações das empresas e dos investidores de que os projectos subjacentes possam não reduzir emissões na medida em que o alegam.

Este mercado tem sido responsável pela compensação de 300 milhões de toneladas métricas de emissões por ano, de acordo com uma análise do Fundo de Defesa Ambiental a partir de dados do fornecedor de informações financeiras MSCI. No entanto, apenas uma fracção dessas compensações é verificada, sendo que o principal selo de qualidade do ICVCM, o CCP, representa 27 milhões de toneladas. Ou seja, muitas das compensações acabam por ser manobras de greenwashing, com alegações ambientais não verificadas.

"A minha principal preocupação com esta estratégia continua a ser a ideia de que a compra destes créditos 'neutraliza' de alguma forma o impacto da Amazon. Não me parece que isso aconteça", disse Gilles Dufrasne, director de políticas da organização ambiental sem fins lucrativos Carbon Market Watch.

Que pormenores faltam ao Abacus?

Deborah Lawrence, cientista-chefe da empresa de classificação de crédito Calyx Global, saudou a exigência do rótulo de tornar públicos os dados sobre a quantidade de carbono que os projectos armazenam, mas disse que ainda tem dúvidas sobre a capacidade da Abacus de garantir que as remoções de carbono são permanentes.

"A questão da permanência requer mais investigação", disse ela. "A forma como está redigida faz-nos hesitar, mas a monitorização anual e a publicação dos resultados são excelentes ideias e elevam a fasquia."

Qual é a pegada ecológica da Amazon?

A Amazon gerou 71,3 milhões de toneladas de emissões equivalentes de dióxido de carbono em 2022, de acordo com o seu mais recente relatório de sustentabilidade, das quais 54,98 milhões de toneladas provêm da sua cadeia de abastecimento.

Serão necessários dois a três anos para que os projectos se qualifiquem para a certificação Abacus, porque muitos dependem do crescimento das árvores e, em seguida, que os promotores comprovem a quantidade de carbono absorvido.

O chefe do departamento de neutralização de carbono da empresa acrescentou ainda que a Amazon está actualmente a analisar mais de 70 propostas de promotores e espera restaurar dezenas de milhares de hectares de terras degradadas.

Jamey Mulligan afirmou que a Amazon poderá tornar-se um dos maiores compradores de créditos de carbono, mas que não os utilizará para substituir os esforços da empresa para descarbonizar a sua actividade.

Segundo uma notícia divulgada nesta quarta-feira, as emissões globais da Amazon caíram 3% no ano passado, uma vez que a empresa cumpriu o objectivo de fazer corresponder toda a electricidade que consome a nível mundial com energia renovável. A energia utilizada e as emissões criadas pelos gigantes da tecnologia estão a ser alvo de maior escrutínio à medida que o crescimento da inteligência artificial aumenta o consumo de electricidade.

Porque é que as empresas não gostam da ICVCM?

Qualquer promotor pode candidatar-se ao selo Abacus desde que cumpra os requisitos da metodologia Verra, que o grupo de trabalho Abacus — uma equipa de cientistas, organizações não-governamentais e especialistas da indústria — ajudou a desenvolver.

Eron Bloomgarden, fundador da Emergent, uma organização sem fins lucrativos que mobiliza fundos do sector privado para os países com florestas, disse que o Abacus ajudaria a fazer crescer o mercado de créditos de compensação de carbono.

"O trabalho da ICVCM é importante, mas é insuficiente para o crescimento do mercado, porque o que estamos a tentar fazer é resolver grandes desafios existenciais como as alterações climáticas e a extinção da biodiversidade", afirmou.