Khalida Popal: “Em que livro está escrito que o meu lugar não é no futebol?”

Depois de ter sido obrigada a deixar o Afeganistão, Khalida Popal escreveu uma autobiografia em que se foca na luta pelos direitos das mulheres através do futebol, que a levou ao exílio na Dinamarca.

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My Beautiful Sisters conta a história de Khalida Popal e da equipa de futebol feminino do Afeganistão D.R.
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É a única rapariga de cinco irmãos. Jogar futebol podia ser só mais uma forma de se entreter, mas para Khalida Popal foi mais do que isso: foi a primeira vez em que se sentiu livre. Com o passar dos anos, tornou-se uma forma de activismo. Afinal, ser mulher e jogadora de futebol no Afeganistão é um desafio às leis e à cultura islâmica. Só que Khalida nunca foi de se conformar – e conta tudo em My Beautiful Sisters, livro publicado na quinta-feira passada em inglês pela John Murray Press​.

Levou muito tempo até aceitar que a sua história ficasse gravada num livro, mas, aos 37 anos, sentiu que era o momento certo para o fazer. Actualmente a viver como refugiada na Dinamarca, a activista acredita que a luta das mulheres afegãs “não é muito conhecida no mundo ocidental”. Talvez um livro sirva para contrariar isso.

O seu primeiro contacto com essa luta aconteceu precisamente através do futebol. Foi quando começou a jogar à bola que ouvia que “as meninas devem estar com as outras meninas e não com os meninos”. E também foi aí que começou a resistir.

Aos 15 anos, decidiu juntar um grupo de raparigas com a mesma paixão pela modalidade. Convenceu alunas e professoras, abriu uma escola e tentou convencer outras mulheres noutros pontos do Afeganistão a seguirem-lhe os passos. Começar “foi fácil”, recorda, até porque a mãe era professora de Educação Física e Inglês. Rapidamente começaram os torneios escolares — e tiveram um sucesso “tão amplo na sociedade” que se reuniram as condições necessárias para formar a primeira liga feminina de futebol.

Em 2007, a Federação Afegã de Futebol reconheceu a selecção nacional de futebol feminino — que Khalida ajudou a fundar e da qual era capitã. Vestiram a camisola do país pela primeira vez nesse ano, num torneio no Paquistão. “Quando o hino nacional tocou, foi a coisa mais bonita que nos aconteceu”, recorda, em declarações ao diário The Guardian.

“Representar o nosso país quando nos diziam que pertencíamos à cozinha foi uma grande conquista. Nunca joguei num Campeonato do Mundo, mas, para mim, aquele momento foi como ganhar um”, recorda.

O lado negro da missão

Não sem mácula: “Disseram que somos prostitutas, más mulheres e que estávamos a fazer uma lavagem cerebral às mulheres por sermos contra a cultura e as crenças islâmicas.” Foi esse tipo de pensamento que acabou por afastar algumas jogadoras da equipa, forçadas a casar pelas famílias, disse, em conversa com o P3. Em protesto, uma delas chegou mesmo a imolar-se pelo fogo.

O caso de Khalida não podia ser mais diferente. A mãe sempre a ajudou a viver os seus sonhos: “Estou feliz porque a minha mãe e outras professoras nos apoiaram. Foi por causa delas que conseguimos continuar o nosso movimento. É por causa delas que ainda estamos cá.”

Em 2011, começou a trabalhar na federação — a primeira mulher a fazê-lo e a assumir um cargo na direcção do comité de futebol feminino. Nessa altura, o seu activismo “foi mais visível do que nunca”, mas também foi aí que as ameaças de morte e as perseguições começaram.

Contou ao Guardian que escapou de um homem armado ao esconder-se no meio do trânsito em Cabul. Diz que foi “uma sorte ter sobrevivido”, mas, na verdade, este episódio foi apenas o início. Não tardou para que a família começasse também a ser um alvo de perseguições: “É muito perigoso provocar as pessoas num país islâmico. Não demora muito até seres apedrejado ou baleado”, disse.

Sem mais opções, decidiu sair do país. Em 2011, foi para a Dinamarca. “Quando saí [do Afeganistão], não sabia o que iria acontecer. Não sabia para onde ia, mas sabia que tinha de ir embora para me proteger a mim e à minha família. Infelizmente, o perigo e os desafios nunca me abandonaram.”

Viveu dois anos num centro de refugiados. Diz que o exílio trouxe um novo desafio – já não era o de ser mulher, mas o de ser refugiada. “Os refugiados estão a enfrentar uma narrativa negativa nos media sobre eles. A forma como os políticos falam de nós é uma loucura. Eu vi como era difícil a vida nos centros de refugiados, especialmente para as mulheres, que estavam a enfrentar os seus traumas, além do isolamento.”

Também no centro de acolhimento usou o futebol para apoiar e empoderar as mulheres, ajudá-las a “fazer qualquer coisa para não pensarem” no que deixaram para trás. Foi assim que nasceu, em 2014, a Girl Power, organização com programas desportivos para rapazes e raparigas migrantes. Neste momento ajudam mais de 10 mil mulheres e crianças em mais de dez países (Dinamarca, Alemanha, Grécia, Itália, Suécia, Noruega, Turquia, Jordânia, Líbano, Afeganistão, Paquistão e Índia).

Luta sem pátria

Em 2021, os taliban regressaram ao poder no Afeganistão. Com a saída dos Estados Unidos da região, em apenas 20 dias, o país regrediu e voltou a aplicar as regras morais do passado. “Foi tão difícil ver o nosso país cair nas mãos dos taliban. Foi chocante porque não estávamos preparadas para isso.”

Foram muitos os que tentaram sair e outros tantos os que foram retirados — e os olhos voltaram-se para a selecção nacional de futebol feminino. “Elas mandavam-me mensagens a dizer que estavam assustadas”, recorda. Com a ajuda do então presidente do Leeds United, da Fundação ROKiT e da influencer Kim Kardashian, a equipa principal e as juvenis conseguiram sair do país, rumo à Austrália — um dos “melhores momentos” da vida de Khalida.

Sobre o que falta fazer, refere o reconhecimento da FIFA, que, até agora, as “tem ignorado”. Apesar disso, a federação internacional agiu quando, em 2016, cinco jogadoras afegãs expuseram os abusos sexuais na federação de futebol feminino. Depois de uma investigação do Guardian, a FIFA acabou mesmo por afastar Keramuddin Karim, ex-presidente da federação, para sempre.

Não esconde que gostava de voltar ao país onde nasceu, mas admite que “já não pertence a um só país”: Inspirar pessoas, apoiá-las e ajudá-las a descobrir o seu poder e como o podem usar para bem da sociedade não é exclusivo de um território.

Com My Beautiful Sisters espera poder deixar uma mensagem a todas as mulheres do mundo: “Se desistirem hoje, não vão trazer mudanças para a geração futura. Quebrem essa corrente para que pelo menos a próxima geração não tenha de enfrentar o que vocês estão a enfrentar. Acreditei em mim e disse que o meu lugar é onde eu quiser. E em que livro está escrito que o meu lugar não é no futebol?”

Texto editado por Inês Chaíça

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