Percebes, de Laura Gonçalves e Alexandra Ramires, premiado em Annecy
Festival volta a atribuir o prémio máximo a uma curta-metragem portuguesa de animação, 18 anos depois de História trágica com final feliz, de Regina Pessoa.
O filme Percebes, de Laura Gonçalves e Alexandra Ramires, venceu este sábado o prémio de melhor curta-metragem do Festival de Cinema de Animação de Annecy, anunciou a organização. O festival francês volta, assim, a atribuir o prémio máximo a uma curta portuguesa de animação, depois de em 2006 Regina Pessoa ter recebido o mesmo galardão com História trágica com final feliz.
Produzido pela produtora BAP — Animation Studios e pela Ikki Films, sediada em França, Percebes é um documentário, animado em aguarela e digital, sobre o ciclo de vida e a apanha deste crustáceo no Algarve, mas o tema serve ainda de pretexto para as autoras abordarem questões sobre turismo massificado, a relação dos habitantes locais com o mar ou o desordenamento da costa portuguesa.
Alexandra Ramires, que é natural do Algarve, reconheceu, numa entrevista dada à agência Lusa, que “há uma relação com aquele lugar”. “Mas este tema não é só do Algarve e é uma coisa que acabamos por viver muito: o crescimento que molda completamente a cidade. Fomos vendo isto a acontecer em Lisboa e no Porto de forma muito evidente.” A realizadora e animadora fala num processo de “distorção da identidade” — “Não vês tantas casas algarvias, vemos mais hotéis do que chaminés algarvias.” Por outro lado, diz, “há ainda coisas com as quais as pessoas se identificam e revêem”.
“Este prémio é um dos mais desejados. Acho que isto só sublinha a força do cinema de animação e aquilo que tem vindo a ser [feito] nos últimos anos. Isto dá-nos força”, disse à Lusa este sábado, no final da cerimónia de prémios. “A liberdade criativa e o cinema autoral são aquilo que faz com que o nosso trabalho seja reconhecido da forma como é”, acrescentou. Por seu turno, Laura Gonçalves comentou: “As nossas histórias que fazemos, que queremos fazer, têm um reflexo, e as pessoas apreciam.”
Colaboradoras regulares
As duas realizadoras são distinguidas no ano em que Portugal foi o país convidado daquele que é considerado o maior festival internacional de cinema de animação, com uma programação extensa, ciclos temáticos e a presença de cerca de duas dezenas de pessoas ligadas ao cinema português.
O prémio “fecha o círculo da melhor forma, isto foi um momento único para nós", diz Alexandra Ramires. “Este destaque todo, esta conversa em volta do cinema de animação português, e poder ter connosco a nossa equipa, ver muita gente reunida... Foi uma cereja no topo do bolo.” O júri do festival atribuiu-lhes o prémio pela autenticidade, “pela forma complexa de contar uma história, pelas imagens sensoriais e por um estilo de animação orgânica”.
Alexandra e Laura são colaboradoras regulares. Já haviam, em 2017, co-assinado a premiada curta Água Mole (2017), sobre a desertificação de uma aldeia, em processo de perda dos seus últimos habitantes. O estúdio BAP, onde desenvolvem os seus projectos, funciona como uma cooperativa: os seus membros, que trabalham juntos há mais de dez anos, acabam todos por colaborar nos filmes uns dos outros.
Laura Gonçalves trabalhou em Elo (2020), curta de Alexandra Ramires que não só venceu um prémio Sophia de melhor curta, como foi distinguida no Festival Internacional de Cinema de Chicago. A revista norte-americana Variety destaca a natureza “surreal” do trabalho, definindo-o como “uma parábola sobre sobrevivência e adaptação”.
Similarmente, Alexandra Ramires trabalhou em O Homem do Lixo (2022), curta de Laura Gonçalves que conquistou o grande prémio e o prémio do público no festival croata Animafest Zagreb. O filme mostra uma família que se junta à mesa para recordar a história do tio Botão, alguém que emigrou para França em busca de melhores condições de vida. Trabalhava como homem do lixo — e armazenava itens que ainda pudessem ser aproveitados, para os providenciar à família em Belmonte (de onde Laura Gonçalves é natural).
Filme australiano como melhor longa
Este sábado, os júris de Annecy atribuíram ainda o prémio de melhor longa de animação ao filme australiano Memoir of a Snail (Adam Elliot), uma história sobre família, solidão e morte, feita em animação de volumes. Une guitare à la mer, de Sophie Roze, venceu o prémio de melhor obra para televisão, enquanto Carrotica, de Daniel Sterlin-Altman, recebeu o prémio de melhor filme de escola.
Na cerimónia, em cujo palco houve cravos vermelhos — a flor também esteve na imagem gráfica do festival, desenhada por Regina Pessoa —, foi ainda distinguida, por exemplo, a longa Flow, de Gints Zilbalodis, uma produção que envolveu três países (Letónia, Bélgica e França) e que conquistou o prémio do público, o do júri e um galardão de distribuição. Já exibido em Cannes, o filme é protagonizado por um gato independente e solitário, que terá de aprender a viver com outros animais num barco, na sequência de umas cheias.
Nesta que foi a sua 48ª. edição, o festival de Annecy contou com um recorde de mais de 17.400 espectadores acreditados, entre público e profissionais, provenientes de 103 países. Em 2025, o país convidado será a Hungria.