Caro leitor,

Há umas semanas, caiu na caixa de e-mail do PÚBLICO a mensagem de uma empresa a dar conta de que cada vez mais pessoas trabalham à noite nas áreas do apoio ao cliente, marketing digital ou de desenvolvimento web. Pelo meio usavam-se argumentos apelativos para justificar as vantagens do trabalho nocturno e acenava-se com a possibilidade de receber um pagamento extra… só não se falava nas suas consequências.

Esta mensagem foi o pretexto para tentarmos perceber se o trabalho nocturno está a aumentar em Portugal, as razões por detrás desse aumento e os riscos associados a esta realidade.

Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), que o Jornal de Negócios divulgou recentemente, mostram que os horários "atípicos" são cada vez mais frequentes em Portugal. No ano passado, 2,3 milhões de pessoas (48% da população empregada) tinham trabalhado à noite, por turnos, ao serão ou ao fim-de-semana, o que representa uma subida face aos 2,2 milhões (46,7%) que estavam na mesma situação em 2021.

O trabalho nocturno foi o que teve o acréscimo mais significativo (17,7%), seguindo-se o trabalho ao domingo (13,4%), ao sábado (10,1%), ao serão (6,3%) e por turnos (5,8%). Sem surpresa, o sector dos serviços é o campeão dos horários atípicos e onde o trabalho nocturno mais cresceu (quase 19%).

Previsto na lei desde 1971, o trabalho nocturno era, tradicionalmente, exclusivo de certas profissões como os vigilantes, recepcionistas, motoristas, médicos, enfermeiros ou trabalhadores de estabelecimentos de diversão nocturna. Com o tempo, estes horários foram-se alargando à área do comércio e dos serviços e, hoje, parecem estar mais generalizados, embora as estatísticas oficiais não tenham dados desagregados por profissão.

Uma pesquisa rápida pelos principais sites de emprego permite concluir que a maior parte das ofertas de trabalho nocturno é para repositores de loja, empregados de bar, vigilantes, assistentes de vendas, recepcionistas, ajudantes de padaria, trabalhadores da área da saúde ou motoristas de TVDE. Menos frequentes, é certo, mas as empresas também pedem operadores de telemarketing, técnicos de apoio ao cliente ou programadores informáticos.

Na perspectiva de Nuno Troni, director da Randstad, este aumento do trabalho à noite não significa que esteja a haver uma transferência do trabalho em horários normais para horários nocturnos. É antes uma consequência de duas situações em concreto.

Por um lado, o facto de haver cada vez mais trabalhadores com necessidade de terem dois empregos – segundo o INE, o número de pessoas com uma segunda actividade cresceu mais de 30% em três anos.

"Com o aumento da inflação e dos custos, assistimos a um aumento das pessoas com duplo emprego que trabalham a tempo inteiro durante o dia e, depois, fazem um complemento à noite para compor o vencimento", destaca.

Por outro lado, há um elevado número de pessoas que trabalham com empresas dos Estados Unidos ou da Ásia e, para estarem no mesmo fuso horário, fazem horários nocturnos.

O trabalho à noite, por turnos e ao fim-de-semana tem sido uma preocupação dos sindicatos, de alguns partidos com assento parlamentar e dos médicos, que alertam para as consequências na saúde destes horários atípicos.

Jorge Barroso Dias, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (SPMT), considera, tal como Nuno Troni, que seria importante perceber quanto do trabalho nocturno ou ao fim-de-semana é duplo emprego.

Esse é, de resto, "um grande desafio" para a medicina do trabalho, uma vez que cabe ao trabalhador e ao médico do trabalho avaliarem as alterações na saúde decorrentes desses horários atípicos. Ora, se "alguns trabalhadores omitem que têm vários empregos e que trabalham à noite ou fazem turnos noutras empresas", como um motorista de pesados que à noite é taxista, por exemplo, essa avaliação torna-se difícil. "São situações que ficam debaixo do tapete e em que não conseguimos intervir", faz notar.

Outro desafio identificado pelo presidente da SPMT é o trabalho remoto em horários que escapam à regulação e à própria inspecção da Autoridade para as Condições do Trabalho.

Num documento enviado em 2018 ao Parlamento, a Ordem dos Psicólogos faz uma lista dos riscos associados ao trabalho nocturno e por turnos, que têm impactos na vida dos trabalhadores, das suas famílias e da própria empresa:

  • Alterações nos ritmos circadianos e perturbações do sono, o que pode provocar fadiga, sonolência, insónias, dificuldades cognitivas e perturbações no sono
  • Problemas psicológicos, com as pessoas que trabalham à noite ou por turnos a dar conta de irritabilidade, ansiedade, depressão e dificuldades em equilibrar a vida profissional com a vida familiar e social, nomeadamente com a parentalidade.
  • Problemas físicos, nomeadamente perturbações gastrointestinais, doenças cardiovasculares e também o cancro (existindo já diversos estudos que comprovam a ligação entre a existência de neoplasias e a disrupção dos ritmos circadianos).
  • Redução da produtividade, aumento das taxas de absentismo e presentismo, assim como maior probabilidade de cometerem erros e terem acidentes.

"Qualquer mudança do horário de sono tem consequências na saúde do trabalhador", destaca Jorge Barroso Dias, que alerta para a responsabilidade de o trabalhador se apresentar ao trabalho nas melhores condições possíveis, embora tenha consciência de que isso nem sempre é possível. "Quando se trabalha à noite, o que se deve fazer logo a seguir é descansar", recomenda, lembrando que quando identifica sinais de perturbações físicas e psicológicas associadas à sua actividade profissional, o trabalhador pode, por lei, pedir um exame "ocasional​".

Sabia que…

Nem todo o trabalho realizado durante a noite é "nocturno"? O conceito legal foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 409/71 que considerava nocturno o trabalho prestado entre as 20h de um dia e as 7h do dia seguinte. A definição aplicou-se até 2003, quando se alteraram os limites e se passou a classificar como sendo nocturno o período de trabalho compreendido entre as 22h as 7h.

Este é o conceito que vigora neste momento, mas os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho podem estabelecer um período de trabalho diferente, desde que tenha a duração mínima de sete e máxima de 11 horas, compreendendo sempre o intervalo entre as 0h e as 5h.

Já o conceito de trabalhador nocturno abrange quem faça, pelo menos, três horas de trabalho normal nocturno em cada dia. Nesse caso, tem direito a um acréscimo salarial de 25%, embora algumas actividades (estabelecimentos de diversão nocturna, por exemplo) que só se realizam à noite não sejam abrangidas por este acréscimo, assim como as situações em que o contrato já tem em conta a penosidade deste trabalho.


Trabalho Extra

 

Tiago Oliveira, líder da CGTP, alerta para aumento de horários atípicos

Tiago Oliveira, secretário-geral da CGTP, reclama aumentos salariais ainda em 2024 e considera que a isenção fiscal de um 15.º mês, proposta pelo Governo, mostra que "há dinheiro para melhorar as condições salariais" dos trabalhadores.

Numa entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença, o dirigente alerta para o aumento dos horários atípicos que abrangem 45% dos trabalhadores em Portugal e deixa a questão: "Porque é que o comércio tem de estar aberto aos domingos e feriados? É uma questão fundamental, é essencial para o país? Não é".

Pressão das empresas para trabalhadores regressarem ao escritório pode levar a aumento das acções em tribunal

Muitas empresas com sede no Reino Unido e nos Estados Unidos estão a exigir que os trabalhadores voltem ao escritório. É o caso da Boots que já anunciou que, a partir de Setembro, os funcionários administrativos passarão de uma semana de trabalho de três dias no escritório para uma de cinco dias, ou do Goldman Sachs, que insiste no trabalho presencial dos trabalhadores seniores.

O jornal The Guardian ouviu advogados e gestores de recursos humanos que prevêem que a resistência dos trabalhadores a essa pressão pode levar a um aumento dos casos em tribunal. Mas o desfecho pode não lhes ser favorável. No início do ano, um tribunal britânico rejeitou o caso de uma trabalhadora da Autoridade de Conduta Financeira do Reino Unido (FCA) que reclamava o direito de poder fazer trabalho remoto integral.

Serviços de maquilhagem ajudam chefes a manter as aparências

Num artigo de opinião publicado no Financial Times, Emma Jacobs fala-nos sobre uma tendência que se tem vindo a afirmar depois da pandemia. Com o crescimento das reuniões à distância e do trabalho remoto, há cada vez mais trabalhadores e dirigentes de empresas que procuram serviços de maquilhagem profissional. Nos últimos 18 meses, conta, uma aplicação de marcação de serviços de beleza registou um aumento das marcações entre as 6h e às 7h da manhã, ou seja, antes do horário de expediente.