El Jebha, primeira noite no Rif

“O amanhecer em Jebha é perfeito como uma manhã de Verão num pequeno porto que se deitou tarde, o mar calmo e a luz suave dos raios de sol antes das oito da manhã”, escreve a leitora Rita Neves Costa.

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El Jebha, Norte de Marrocos RITA NEVES COSTA
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De carro à descoberta do Rif, fascinante região do Norte de Marrocos. Junto ao Mediterrâneo, montanhas imponentes, terras áridas, clima rude. Povo berbere, orgulhoso, ancestral. Paisagens impressionantes, rifenhos de forte carácter, aí vamos.

Partida de Tétouan (ou Tetuão) já durante a tarde, e que linda esta estrada, a nacional N16, também conhecida como rocade méditerranéenne, vistas soberbas e condução agradável. Fim do Verão, seguindo pela linha da costa, cruzando os veraneantes que saem da praia neste final de tarde.

Paramos numa pequena vila à hora da chamada para a oração, aquela ao fim do dia, parece uma canção de embalar, já estamos para lá da cidade Oued Laou, oued significa rio, e uma forma de delimitar o coração do Rif será esta, entre Oued Laou e Oued Kert. Aqui vendem pão, como em todas as beiras de estrada, redondo e achatado, sempre bom, choukran.

Tínhamos decidido que a primeira etapa da viagem seria até El Jebha, o co-piloto telefona a marcar hotel, não há muitas alternativas, o primeiro está cheio, mas o segundo tem nome de agrado a qualquer viajante lírico em início de périplo: Hotel Rif.

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Entretanto o sol já se pôs, agora é noite escura, sigo por curvas e contracurvas, mar à esquerda, montanha à direita, não vejo nada, a que velocidade vou, estou a deslizar, ah agora há obras, surgem carros, ultrapassam-me na escuridão e nas linhas contínuas, ah olha vultos andando na berma, peões, afinal só vou a sessenta, curvas e contracurvas.

Chegando a El Jebha, a N16 transforma-se em avenida Marginal e provavelmente todos os habitantes e alguns viajantes estão aqui passeando a pé. Circulamos devagar, vou-me habituando a conduzir no meio da multidão, afinal não é assim tão difícil, basta não atropelar.

Eis uma praceta com árvores, cafés e esplanadas, lugares de estacionamento, não fosse a presença nos cafés composta exclusivamente de homens e poderíamos estar em Portugal. Aproveitamos para perguntar onde se encontra o Hotel Rif. Este rifenho, o primeiro que saudamos na viagem, transmite já a força tranquila, o acolhimento correctíssimo sem falsos entusiasmos: o hotel é aqui mesmo, no prédio em frente.

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Só falta mesmo estacionar. Esclareço o leitor neste início de viagem sobre as modalidades marroquinas e rifenhas deste exercício, e podemos falar aqui de engenho e arte. Este arrumador, como tantos outros encontrados em Marrocos, veste colete reflector e se não vive ali mesmo, junto aos seus lugares de estacionamento, parece, a barraquinha com os seus apetrechos não está longe, mas admiremos então as indicações precisas, o gesto ao milímetro, não é preciso falar alto nem gesticular exageradamente, com este especialista estaciono em qualquer lugar exíguo, e assim foi.

Pequeno hotel, modesto e típico, quarto com lavatório, casa de banho ao fundo do corredor. Saímos para jantar. El Jebha é um pequeníssimo porto de pesca, serão 200 metros de casas na frente de mar, há também um imponente rochedo, e escolhemos o café-restaurante com nome de rocha, La Roche Noire, com os seus três andares, ainda animado. Depois de calamares e camarões, um pouco de história recente do Rif.

Começo por aprender que, há cem anos, aqui se tentou criar a República do Rif, ideia de Abdelkrim El Khattabi. Tentar perceber a vida de Abdelkrim parece-me impossível, como um resumo de toda a complexidade das relações de poder entre indivíduos e entre nações. Podemos dizer simplesmente que Abdelkrim, nascido em 1883, era um notável da cidade de Ajdir, liderou os rifenhos contra os espanhóis em 1921, concebeu e lançou as fundações da República do Rif, perdeu a guerra contra a coligação França-Espanha em 1926, viveu no exílio o resto dos seus dias dias, inspirou revolucionários em todo o mundo.

Podemos acrescentar que foi juiz, professor, jornalista do El Telegrama del Rif, durante os doze anos que viveu em Melilla, foi ordenado caballero de Isabel la Católica, e nessa altura de proximidade com Espanha a casa da família onde vivia o pai de Abdelkrim tinha sido alvo de incêndio por um grupo de rifenhos. Abdelkrim acabou por ser preso em 1915 pelos espanhóis, a acusação teria que ver com eventuais ligações a empresários alemães, Abdelkrim tentou fugir da prisão, tendo caído e ficado coxo o resto da vida, mas isso não o impediu de se transformar num chefe militar bem-sucedido, para dizer pouco. Mas sobretudo sabemos que Abdelkrim queria criar um estado moderno no Rif, exprimia a sua admiração por Ataturk, e de facto formou governo, assembleia, reformou a justiça, acabou com a lei do Talião entre as orgulhosas tribos rifenhas.

Há muito para acrescentar, mais tarde, deixemos cada um interrogar-se, relembremos que tudo isto é recente, que há séculos de História do Rif a descobrir, e pode-se também escolher a veia poética, digamos o pequeno livro de Paul Bowles, Points in Time, página 58, “There in the Rif injustice was the daily bread.” E continuemos a viagem.

Dia seguinte. O amanhecer em Jebha é perfeito como uma manhã de Verão num pequeno porto que se deitou tarde, o mar calmo e a luz suave dos raios de sol antes das oito da manhã. Ao pequeno-almoço, sublime tostada com marmelada em frente ao mar e depois o café, já na praça do Hotel Rif, tão bom, daqueles que apetece tomar logo outro a seguir, daqueles que não sei se merecemos.

É tempo de retomar a estrada, em cinco minutos já estamos longe, alto, de um miradouro vê-se como Jebha é pequena, junto ao mar e ao rochedo que parece menos imponente. As verdadeiras montanhas começam aqui, a viagem continua. Próxima paragem: Al Hoceima.

Rita Neves Costa

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