Homenagear os advogados de presos políticos é homenagear os próprios presos
Mais de 25.000 portugueses foram encarcerados por um delito que todos nós já cometemos: discordar!
I
No passado dia 23 de Abril, no Salão Nobre da Ordem dos Advogados, por iniciativa do seu Conselho Geral, decorreu uma cerimónia de homenagem aos advogados que defenderam, durante o Estado Novo, presos políticos.
Inserida na comemoração e celebração dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, da Revolução de todos nós, esta homenagem acabou por passar despercebida. Não posso, no entanto, deixar de referenciá-la, considerando a sua importância nas comemorações que todos vivemos.
Na verdade, homenagear os advogados de presos políticos é, antes de tudo, homenagear os próprios presos, alguns deles também advogados.
Daí a minha primeira palavra e pensamento, quando falo ou escrevo sobre esta temática, dirigir-se sempre para esses resistentes: a todos os presos políticos, um agradecimento especial, muito especial, com eterna gratidão.
Muita da nossa liberdade, aliás, deve-se ao que sofreram, na pele, na vida, em todas as suas vertentes, e muitas vezes não nos damos conta disso, não sendo merecedores dessa luta. Por isso, deixo aqui estes números:
- Foram julgados no Tribunal Militar Especial (TME) 10366 presos políticos e no Tribunal Plenário (TP), que se lhe seguiu após 1945 e até 1974, 3940 presos políticos.
- Defenderam presos no TME 320 advogados e no TP 386 advogados – muitos dos advogados que passaram pelo TME passaram pelo TP, pelo que é seguro dizermos que cerca de 450 advogados defenderam presos políticos nos Tribunais que assim foram institucionalizados.
- Se a estes números juntarmos todos aqueles que não foram julgados, foram-no noutra espécie de tribunais, ou por delitos que eram políticos e foram disfarçados de delitos comuns, é seguro garantir que mais de 25.000 portugueses foram encarcerados por um delito que todos nós já cometemos: discordar!
- A estes juntam-se, ainda, aqueles que tiveram, sem nunca ser presos, de se amarrar à clandestinidade ou à fuga de Portugal, deixando a vida para trás, fugindo à prisão – e quantos, entre todos, não acabaram, mesmo, por morrer às mãos da tirania?
É trágico, é comovente e é inaceitável, mas os factos não permitem ilusões.
II
Quis o destino que, considerando que sou filho de um desses advogados, Joaquim Pereira da Costa, tenha convivido desde sempre com diversos advogados que defenderam presos políticos, alguns ainda no TME.
Focando-me nos Tribunais Plenários e na memória mais recente que temos, queria referir o seguinte:
Pela passagem no septuagésimo aniversário do dr. Oliveira Salazar, 402 estudantes das três academias solicitaram-lhe em Maio de 59, o seu afastamento, de forma clara e objectiva. Deixo este trecho do documento então apresentado, para percebermos a dimensão do requerido:
“E uma vez que consideramos:
- Que é utópico conceber no regime político vigente uma universidade autónoma e democrática;
- Que as questões mais graves do meio universitário se põem com igual ou maior acuidade nos outros sectores da juventude.
- Que todos esses problemas só encontrarão solução num plano político.
- Que a Nação vê neste momento limitarem-se-lhe as possibilidades de participação na escolha dos seus órgãos representativos, como prova a recente proposta de lei que elimina a eleição do Presidente da República por sufrágio directo e universal desfazendo o último vestígio de aparência democrática do nosso regime constitucional
Os signatários sugerem o afastamento de V. Exa. da vida pública, por ocasião do seu septuagésimo aniversário, como condição primeira da resolução do problema político nacional, capaz de contribuir duma forma significativa para a pacificação da Família Portuguesa. (…)”
Este documento, que à época marcou uma posição de ruptura entre os subscritores a o regime, é hoje fundamental para percebermos como se forjaram as lutas académicas que descambaram, para o bem, na denominada crise de 62, embora nem sempre seja referenciado.
Essa crise, que no fundo começou no fim dos anos 50, é concomitante ao início da Guerra Colonial e marca o Estado Novo dentro das universidades, dentro das elites estudantis e, muitas vezes, no relacionamento com as suas famílias.
De tal forma que criou, mais uma vez forjando, um corpo de estudantes comprometido com a luta e a Resistência ao Estado Novo, que viriam a desenvolver, a projectar e executar actividades absolutamente fundamentais para o seu fim.
Entre elas, defender presos políticos – e que se tornou a terceira geração (e hoje mais conhecida) geração de presos políticos!
III
Perguntei muitas vezes, de forma provocatória e juvenil, como podia um advogado aceitar ser parte de um processo que servia um dos desígnios do Estado Novo – a “farsa”, ou, como foi dito e escrito, “fascismo de toga”.
A resposta que obtive foi sempre marcante: o papel do advogado é defender, comprometido com a causa, quem mais precisa, em todas as circunstâncias!
Pelo que a sua forma de lutar contra o aparelho repressivo do Estado Novo (Forças Armadas, PVDE/PIDE/DGS, Tribunais Políticos e Censura) foi a defesa de presos políticos e de um modelo constituinte que não existia: que reconhecesse materialmente a democracia.
É esse reconhecimento e essa luta que se celebra e referencia, em permanência e sempre na defesa intransigente dos direitos fundamentais, na lógica do Estado de Direito e da democracia, sem esquecer todos aqueles que lutaram para que a liberdade fosse o principal desígnio do nosso tempo e para que a Constituição não servisse para alimentar a tirania.
No seguimento desta homenagem e também por sugestão da Ordem dos Advogados, o senhor Presidente da República agraciou os advogados de presos políticos que, nos dias de hoje, estão entre nós e que representam a memória que persiste e que consigna, 50 anos depois, a luta pela liberdade!
A todos, um agradecimento emocionado!