Os crimes da História

Afirmar que “nada temos que ver com o passado” é tão absurdo como afirmar que “somos os herdeiros responsáveis por todo o passado”.

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O navio negreiro português Diligente, que foi capturado pelo britânico H. M. Sloop Pearl com 600 escravos a bordo, em 1838. Este desenho foi feito pelo tenente da Marinha Real Britânica Henry Samuel Hawker Getty Images
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1.

No debate sobre as reparações devidas aos povos colonizados, joga-se sobretudo uma questão: que fazer do passado histórico? Questão que se levanta quando esse passado parece assombrar o presente, crivando-o de dívidas e de dúvidas.

Em Portugal, o debate tem-se extremado em duas posições opostas que se enunciam da seguinte forma: ou “somos (enquanto nação representada pelo Estado) os herdeiros de toda a nossa história”, ou “nada temos que ver com o passado”. Entre as duas afirmações apresentam-se outras que as matizam ou combinam, mas que não deixam de as tomar como referência.

Se, enquanto povo, somos os continuadores legítimos da totalidade da história, podemos optar por um de dois pontos de vista: ou herdamos um passado heróico, sem mancha, de que nos devemos orgulhar, ou perspectivamos esse passado segundo a exploração e os crimes de que somos ainda hoje culpados. Em ambos os casos, a história é vista como um bloco homogéneo de acontecimentos sobre os quais se projectaram valores presentes. Tanto os que condenam o racismo, a escravatura e a exploração colonial como os que enaltecem os efeitos civilizadores dos Descobrimentos têm os seus critérios morais que aplicam igualmente a todas as épocas. Constrói-se deste modo uma falsa ideia do tempo histórico, uma História una e contínua, com um único sentido, que evolui conformando-se cada vez mais com uma ética política de que “nós” somos os dignos representantes. “Nós”, isto é, a nação portuguesa que tem uma consciência de si bem definida e coesa. Decorrem daqui as exigências destas duas visões da história: devemos reparar todo o mal que fizemos durante os séculos de colonialismo; nada devemos aos povos colonizados que só beneficiaram com a nossa presença em África, na Ásia e no Brasil.

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Rosa-dos-Ventos em frente ao Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa Tânia Azevedo (arquivo)

Uma terceira posição pretende isentar-se da responsabilidade quanto ao passado, mas com uma outra concepção da história. O passado passou, não há nada a fazer, os crimes do colonialismo foram “eles” (os portugueses das épocas anteriores) que os cometeram, como foram eles os responsáveis pelo bem que fizeram – e não nós, que vivemos num tempo diferente com valores diferentemente aplicados. A história é assim, descontínua, cheia de cortes e rupturas, não temos de nos considerar herdeiros de um legado que não passa de uma construção fictícia. A culpabilização que os fundamentalistas da reparação obrigatória nos querem infligir não é mais do que uma estratégia política que visa alcançar um poder actual e não resgatar o passado.

Uma tal concepção da História pressupõe um relativismo absoluto, que arruína definitivamente noções como “identidade nacional”, “memória”, “narrativa histórica”. Paradoxalmente, também ela congela a História num bloco fragmentado, negando-lhe o poder de constituir linhas contínuas de acontecimentos. Afirmar que “nada temos que ver com o passado” é tão absurdo como afirmar que “somos os herdeiros responsáveis por todo o passado”.

2.

Quando se discute a devolução de objectos de arte às antigas colónias europeias, estabelece-se uma quase unanimidade entre todos: sim, é justo devolver bens que foram pilhados, roubados ou adquiridos ilegalmente. Mas não é pelo que se julga que se devem fazer as reparações – não é porque é devida uma reparação (a quem?), mas porque se trata de fazer justiça desapropriando herdeiros ilegítimos. Para que a sombra da história não paire sobre nós como um peso de que não nos apercebíamos, mas de que tirávamos mais-valias. Com a devolução dos objectos de arte queremos, afinal, ficar livres do passado e da culpabilização que ele pode representar. Esta posição funcionaria como um critério para todo o tipo de “reparações”. Indemnizar, “pagar”, “resgatar” são gestos irrisórios que vão buscar aos factos da história elementos calculáveis e quantificáveis para exercer uma justiça completa. Mas não se resgata com um cálculo, nem mesmo com uma acção simbólica, o sofrimento de um escravo. Devemos “reparar” o mal abominável da escravatura? Sim, se ela é vista como um bloco de História petrificado de que nos aproveitamos hoje, e de que nos devemos libertar — dele e do que somos; caso contrário, devemos desmontar a construção e a narrativa factícias com que nos tentam aprisionar.

Em todos os casos, precisamos de nos libertar da História para devir outros, diferentes dos que ela nos tornou. Precisamos de libertar a história para a podermos reinventar.

3.

Mas não é isto o que fazem já os activistas das reparações? Criticam o discurso da historiografia hagiográfica que construiu a visão do passado glorioso – para a substituírem pela ideia de um passado infame. Destroem estátuas dos colonizadores, modificam a sua língua que humilha os povos colonizados (por exemplo, chamando-lhes “índios”, em vez de “indígenas”), corrigem os manuais escolares e os livros de História. Querem transformar o presente que se deve tornar, por inteiro, uma reparação do passado. Isto é, pretendem alterar o passado. Torná-lo reversível, redimi-lo. Comportam-se, afinal, como aqueles tribunais dos mortos das mitologias que avaliam as almas para lhes conferirem diferentes tipos de imortalidade. Tribunais justiceiros que detêm o critério absoluto do bem e do mal. No fundo, a função da imortalidade é a de poder modificar o passado, apagá-lo ou invertê-lo, recomeçando uma outra vida. É o que visam também as reparações absolutas dos crimes coloniais.

Não é certamente o que entendemos por “libertar e reinventar a história”. A transformação do presente pela acção (anti-racista, antixenófoba, etc.) deve instaurar uma outra dimensão de sentido, o sentido de um devir, e não de uma mudança de temporalidade (da história), que é sempre uma simples alteração do estado de coisas. Uma outra dimensão “espiritual”, na transformação do que somos e vivemos — em particular, na relação com os antigos povos das ex-colónias.

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Fábio Augusto

4.

O que fazer com os mortos que nos assombram? Não esqueçamos as implicações políticas imediatas de toda esta questão. Em Espanha, o PP e o Vox uniram-se para procurar aplicar, nas regiões que governam, “leis da concórdia” que branqueiam os crimes do regime franquista, revogando a lei anterior, proposta pelos socialistas, que condenava os grupos que apoiavam o franquismo. A lei socialista propunha a reparação pelas vítimas da guerra civil e transformava o monumento de Valle de los Caídos, onde estava o túmulo de Franco. O espectro do ditador espanhol veio insuflar energia à política da direita e da extrema-direita.

Em Portugal, o debate sobre o passado colonial reanima velhos ressentimentos, com o fantasma de Salazar a legitimar forças nacionalistas da extrema-direita, nostálgicas do antigo Império. Não por acaso, o Chega, que namora às escondidas com “Deus, Pátria e Família”, chama “traidor à Pátria” ao Presidente da República que apela à reparação pelo passado colonial. Por um lado, solta-se o espectro do ditador que entra na linhagem dos heróis dos Descobrimentos e da colonização, por outro acordam-se as figuras espectrais dos escravos e indígenas para nos espicaçar exigindo reparação. Os dois lados amarram-nos ao passado e à História fabricada. E, com isso, bloqueiam o devir da democracia.

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