Um AVC aos 20 anos pode parecer “um atestado de invalidez”. Eles mostram que a “vida continua”

Por ano, 16% dos casos de AVC em todo o mundo acontecem em pessoas com idades entre os 15 e os 49 anos. Três jovens falam dos seus AVC e da recuperação, que ainda continua.

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Daniel Moreira teve um AVC aos 25 anos Paulo Pimenta
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Durante quase um ano, todas as semanas, Beatriz Silva entrou no Centro Médico da Murtosa (CMM). Subia a rampa que dá acesso ao centro sempre com o auxílio da irmã, arrastando um pouco a perna direita. Depois de um acidente vascular cerebral​ (AVC), o equilíbrio e a segurança durante a caminhada ainda não estavam totalmente recuperados e foram o foco de mais uma sessão de fisioterapia, em Abril. Em voz alta, revê o que quer dizer à fisioterapeuta: tem medo de subir escadas sozinha e muita ansiedade quando visita locais que não conhece.

Beatriz Silva tem 21 anos. Vive na Torreira, no concelho de Aveiro, e estava longe de imaginar que a sua vida mudaria a 15 de Agosto de 2023, sem razão aparente. Por hora, três pessoas têm um AVC em Portugal – são cerca de 25 mil casos por ano. Beatriz fez parte destes números desde um dia de férias “totalmente normal”.

“Num minuto, estava tudo bem e, de repente, deu-me uma dor muito grande do lado esquerdo do corpo. Era uma dor constante, muito forte e que me fechou imediatamente a garganta”, conta. Em minutos, perdeu a força nos braços, deixou de conseguir falar normalmente e depois de andar. Era um AVC isquémico, o tipo mais comum de AVC. Um coágulo estava a interromper o funcionamento normal do hemisfério esquerdo do cérebro, o que lhe causou algumas sequelas no lado direito do corpo.

Os médicos nunca souberam o que originou o incidente. “Na altura, até achávamos que era um ataque de pânico porque os sintomas eram semelhantes. Mas quando comecei a ter os três sinais principais de AVC, descartámos a opção”, recorda a jovem. A sensação de engasgo, tonturas e aumento da frequência cardíaca são alguns dos sintomas comuns a um ataque de pânico e a um AVC. Mas Beatriz já tinha experimentado um ataque de pânico e não demorou muito a perceber que aquilo era diferente, principalmente quando deixou de conseguir controlar os movimentos.

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Beatriz Silva cinco dias depois depois do AVC, ainda no hospital DR

Apesar da dúvida inicial, foi atendida com rapidez pelo 112. Na ambulância, o cenário confirmou-se e contactaram imediatamente a Via Verde AVC de Aveiro, para dar entrada o mais rápido possível. Inicialmente, a intenção era ser atendida em Coimbra, mas os médicos “receavam que não resistisse à viagem”. “Assim que cheguei a Aveiro, dei entrada imediata. Fiz uma TAC e descobriram que tinha um coágulo no lado esquerdo do cérebro. Através da medicação, e como cheguei rápido ao hospital, conseguiram desfazer o coágulo com rapidez”, explica.

Beatriz recorda que o corpo não lhe obedecia nos primeiros tempos. Não conseguia engolir, pelo que teve de usar uma sonda gástrica durante o primeiro mês. Tinha perdido a mobilidade e precisava de ajuda em todas as tarefas: caminhar, ir à casa de banho, tomar banho.

“Achei que ia voltar logo a casa. Fiquei dez dias no hospital e foi durante esses dias que percebi o que se passava: precisava de auxílio para absolutamente tudo. Toda a independência que eu tinha, tinha-se perdido. E isso assustou-me”, confessa. “Fiquei com a impressão que ter um AVC aos 20 anos é como receber um atestado de invalidez para a vida toda. E isso deitou-me muito abaixo, não sabia o que fazer a seguir”, refere.

Não foi só Beatriz que ficou receosa dos tempos que se seguiam. “A família ficou toda em choque. Foi um abanão. Nunca tive problemas de saúde e foi uma situação que escalou muito rápido. Lembro-me, no hospital, que os meus pais pensaram que eu tinha falecido quando os médicos os chamaram. Eles ficaram mesmo muito assustados e ainda agora, sempre que tenho alguma dificuldade, eles reagem com alguma aflição.”

“Nunca me passou pela cabeça que era um AVC”

Daniel troca de lado com Diogo, para conseguir apoiar a mão esquerda no seu ombro. Estão a descer alguns degraus no Palácio de Cristal, no Porto, e o jovem de 27 anos precisa do apoio do namorado por causa da dificuldade de mobilidade no lado direito do corpo.

Passaram-se dois anos desde aquele dia em que, conta Diogo, Daniel ficou muito quieto no sofá onde estava deitado. Não falava, não se mexia, não respondia. Diogo tentou sentá-lo, levantá-lo e pô-lo a apanhar ar: “Era Verão, estava muito calor, ele começou a transpirar mesmo muito, ao ponto de escorrer água. Consegui levantá-lo e levá-lo para a beira da janela, mas ele começou a perder a força no lado direito do corpo e acabei por ter de o deitar, sem ele dizer sequer uma palavra. Depois, começou a vomitar.” Foi aí que chamou a ambulância.

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Daniel conta com a ajuda de Diogo para alguns momentos do dia-a-dia Paulo Pimenta

“Nunca me passou pela cabeça que era um AVC, especialmente por causa da idade”, afirma Diogo. Daniel está a ouvi-lo, porque, apesar de ter acontecido com ele, a história tem de ser narrada por outro. “Não me lembro de nada. Só sei que acordei [na cama do hospital] a meio da noite e pensei: ‘Ainda é muito cedo, vou voltar a dormir...’”, diz.

No dia seguinte explicaram-lhe que tinha sofrido um AVC hemorrágico, fruto de uma malformação numa artéria, que existia desde nascença, e da qual não tinha conhecimento até então. Seguiu-se uma cirurgia para corrigir a malformação e um mês de internamento, onde iniciou a fisioterapia. “Foi muito doloroso. A fisioterapia começou com pequenas coisas como começar a levantar-me e a ganhar força no tronco. Quase não tinha força para estar sentado, porque estava sempre deitado. Duas horas sentado pareciam oito”, recorda.

Ainda foi para um centro de reabilitação, mas acabou por desistir ao fim de poucos dias, porque queria voltar para casa, para onde regressou de cadeira de rodas e foi, literalmente, passinho a passinho, procurando a recuperação. Seguiram-se as sessões de fisioterapia e exercício com Diogo. Voltou, mais tarde, ao centro de reabilitação, onde conseguiu “melhorar bastante da perna e do pé”; o braço direito ainda teima em não subir totalmente. Actualmente, não está a fazer fisioterapia.

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Daniel teve um AVC aos 25 anos Paulo Pimenta

“Durante um AVC, uma parte do cérebro deixa de receber oxigénio e os neurónios morrem depois de um tempo. Perdem-se funções. No entanto, o cérebro tem uma característica muito importante, que é a neuroplasticidade. Isto significa que outras regiões do cérebro podem assumir e aprender a função que se perdeu. E é isso que se faz durante a fisioterapia: estimula-se a neuroplasticidade”, explica Maria Goreti Matos, que se especializou em fisioterapia neurofuncional​.

Para Beatriz Silva, os primeiros tempos em casa não foram fáceis. Teve de procurar apoio em clínicas do sector privado, dado que “as filas de espera e o tempo entre consultas eram demorados no público”, um problema, uma vez que a recuperação de um paciente que sofreu um AVC tem de ser feita “o mais rápido possível”, especialmente nos primeiros seis meses.

Foi um período “intenso”, em que todos os dias tinha de lutar para ver progressos. Aos poucos, com exercícios de mobilidade e terapia da fala, conseguiu retomar as aulas na faculdade.

Meses depois de fisioterapia, ainda enfrenta algumas adversidades: “Perdi a maior parte da sensibilidade do lado direito. Não sinto a água fria ou quente, o toque das pessoas… É tudo muito anestesiado. Às vezes, magoo-me e não dou conta. Ainda sinto a boca um pouco paralisada e noto que não choro com tanta facilidade do olho direito. São coisas que não sei se são recuperáveis, mas que me tenho esforçado, todos os dias e com tempo, para que elas voltem. A vida continua...”

Jovens demoram mais a aceitar a nova situação

Afinal, quais são as razões que podem explicar a ocorrência de um AVC numa pessoa jovem? “Enquanto nas pessoas mais velhas conseguimos encontrar mais frequentemente alguma patologia subjacente que explica perfeitamente a origem do AVC, nas pessoas mais novas muitas vezes não conseguimos entender como aconteceu. Mesmo assim, em doentes abaixo dos 55 anos, que são considerados jovens, já encontramos muita gente com doenças das artérias, sobretudo fumadores”, explica a neurologista Elsa Azevedo.

A directora do Serviço de Neurologia no Hospital de São João e professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto é também responsável pela criação da Portugal AVC, uma associação com delegações pelo país inteiro e que acompanha pessoas que viveram um destes episódios, tentando reinseri-los na sociedade.

O “tabagismo, hipertensão, colesterol aumentado e diabetes” são alguns dos factores mais comuns que Elsa Azevedo enumera. No entanto, um AVC também pode ocorrer pela “anatomia da pessoa”, que pode ter artérias mais sinuosas e em contacto próximo com uma superfície óssea, facilitando a formação de coágulos.

Cada caso é único e mesmo pequenas escolhas podem levar a um desfecho inesperado: “A gota de água pode ser qualquer coisinha. A pessoa pode ter começado a fumar recentemente ou até começou a tomar a pílula, o que aumenta discretamente a coagulabilidade do sangue. Às vezes também são defeitos de nascença, malformações ou pequenos problemas cardíacos. Há muitas possibilidades.”

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Beatriz, de férias, em 2024, um ano depois do AVC DR

O AVC continua a ser uma das principais causas de morte em todo o mundo – são mais de seis milhões de mortes, segundo dados da Organização Mundial de AVC. De acordo com a neurologista, Portugal registou uma descida no número de mortes por AVC: “De 2017 a 2022, temos notado que houve um decréscimo na mortalidade. Isto leva a crer que os tratamentos que agora existem são mais eficazes. No entanto, temos de nos lembrar que o AVC não é só a primeira causa de mortalidade, mas é também uma causa importantíssima de incapacidade permanente”.

A especialista sublinha a importância da criação da Via Verde AVC, que acelera todo o processo de atendimento hospitalar. “A pessoa deve identificar os sinais o mais rápido possível e ligar imediatamente para o 112. Assim, entra no hospital mais próximo com equipa de AVC e nós já ficamos ao corrente do que se está a passar. Não se perde tempo em filas e urgências, tempo que é extremamente precioso nestes casos”, explica. Para além disso, a medicação intravenosa actual e a trombectomia mecânica também facilitam a desobstrução das artérias de forma rápida.

Por ano, 16% dos casos de AVC acontecem em pessoas com idades entre os 15 e os 49 anos, valor que tem aumentado por todo o mundo. Em Portugal, a situação não acompanha o ritmo de crescimento da mesma forma. “A proporção de episódios de internamento de idades inferiores aos 55 anos tem-se mantido estável, estamos sempre à volta dos 10%, desde 2017”, descreve Elsa Azevedo.

Ao longo da sua carreira, a neurologista tem notado que as pessoas mais novas demoram a aceitar a sua situação: “Ninguém está preparado, mas as pessoas mais jovens ficam muito revoltadas quando isso acontece. Perguntam-se o que fizeram de errado e é realmente muito complicado...”

Inicialmente, os pacientes passam por “uma fase de tristeza, de negação e revolta” que deve ser acompanhada pelos profissionais de forma empática, segundo Elsa Azevedo. “Só quando ouvimos realmente a pessoa e nos abrimos para ela é que se inicia o caminho de aceitação. Tenho visto casos espantosos de pessoas muito pessimistas que se tornaram exemplos e ajudaram outros jovens em situações semelhantes. Têm uma força incrível e tenho aprendido muito”, confessa a neurologista.

Para diminuir o número de casos de AVC, Elsa Azevedo reforça a importância de hábitos saudáveis, como “horários de sono regulados, exercício físico, alimentação saudável, boa saúde mental e evitar situações de muito stress”, para além do afastamento do consumo de álcool e tabaco. “Depois, é importante estar alerta aos pequenos sinais. Controlar a pressão arterial, visitar o médico regularmente, fazer análises periodicamente e perguntar em caso de dúvida. A maioria dos casos pode ser evitada com estas práticas”, relembra.

Partilha de histórias como forma de superação

Frederico Augusto vive no Porto e tem 33 anos. Aos 24, no dia a seguir ao seu primeiro casamento, sofreu um AVC isquémico, também do lado esquerdo do cérebro. A esposa encontrou-o sem sentidos e Frederico seguiu para o hospital com urgência.

Teve de ser induzido em coma, durante dez dias. Quando acordou, estava numa situação fora do seu imaginário até ali. Tinha perdido totalmente a mobilidade, não conseguia respirar sozinho, muito menos falar e comer. Assim que percebeu o que tinha acontecido, entrou numa “fase de não-aceitação”: “Não percebia o porquê de me ter acontecido isto. Senti-me ancorado e não sabia como progredir, como recuperar. Nem tinha noção do que era um AVC e que me podia acontecer...”

As causas continuam “inconclusivas”. Todavia, Frederico admite que, na altura, tinha a vida de um jovem normal. “Não me privava de festas. Fumava, bebia um pouco, tinha um bocado de excesso de peso. Acabei por saber, depois do AVC, que uma das válvulas do meu coração tinha um funcionamento irregular. Acredito que foi uma conjugação de vários factores que levaram a este desfecho”, recorda.

Há dez anos, Frederico “não tinha ninguém que compreendesse isto e não sabia de histórias iguais” à sua, refere. Assim que possível, começou a partilhar a sua experiência por vários órgãos de comunicação social. E foi assim que conheceu a Portugal AVC, onde agora tem um lugar na direcção. A associação possui vários grupos de ajuda mútua, os GAM, espalhados pelo país. Uma vez por mês, vários sobreviventes de AVC, prestadores de cuidados, familiares e profissionais de saúde juntam-se para partilhar as suas dúvidas e aprenderem mais.

Actualmente, é o dinamizador do GAM do Porto. Os encontros acontecem no Hospital da Prelada, na última sexta-feira de cada mês, e têm servido para desmistificar a ideia de que um AVC “significa o final de uma vida social”. “Uma pessoa, quando sofre um AVC, acaba por se isolar porque não se sente entendida. O simples facto de este grupo existir já muda essa ideia porque estamos todos na mesma situação. No início há uma barreira de comunicação natural, mas que se vai esbatendo. E, assim, as pessoas vão saindo de casa porque se sentem ouvidas e identificam-se. Tenho visto evoluções incríveis...”, descreve Frederico.

Para Daniel, a grande evolução foi, dois meses depois do AVC, voltar a vestir a pele de Samantha Minelli. Ainda em cadeira de rodas, subiu ao palco onde costumava actuar antes do AVC, para uma performance ao som de Ashes, de Céline Dion — contra a vontade da mãe e do namorado, saliente-se, que tinham medo que fosse demasiado cedo e temiam que as luzes pudessem provocar um episódio de epilepsia, que entretanto se desenvolveu.

Mas Daniel insistiu e foi. “A recepção do público foi muito calorosa. Quando abriu a cortina, quase comecei a chorar com tanta emoção. Choviam aplausos e gritos. Fiz o playback e a reacção deu-me força. Levantei-me da cadeira de rodas...”

Teve de adaptar os seus números a uma nova realidade. “Tu adoravas dançar”, diz o namorado. “Sim, mas o que eu gosto mais no transformismo é a performance, o transmitir aquilo que estou a sentir”, afirma. Os “números mais mexidos” tiveram de passar a ser “mais interpretativos”: “Houve muitas coisas que perdi na Samantha, sim, mas outras que ganhei. O playback está muito, muito, melhor. Não me posso mexer tanto, mas eu gosto mais da Samantha de agora, é muito mais teatral.”

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A preparação também requer mais esforço e a ajuda de Diogo, principalmente para se vestir e arranjar as sobrancelhas. Nada disto é impeditivo para o artista, que ainda há pouco participou no Porto Drag Fest e continua com vontade de trabalhar no mundo do transformismo – o emprego que tinha num cinema, antes do AVC, ficou para trás.

Os desafios, contudo, não são só práticos e físicos. Aceitar um AVC aos 25 anos pode ser difícil: “Eu acho que ainda hoje não absorvi essa informação. Aceitei, claro, que remédio tenho eu... E psicologicamente sinto-me igual, sinto-me eu. Só que há algumas coisas...”

Também uma relação pode tremer, mas esta, que agora conta a mesma história a duas vozes, só ficou mais forte. “Antes de ter o AVC, íamos acabar”, sorri Daniel. “Mas ele sempre lutou por mim. Depois do AVC percebi, definitivamente, que ele é a pessoa que vou levar para o resto da minha vida.”

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