Do SEF à AIMA: como não fazer uma transição
A transição do SEF para a AIMA tem sido um exemplo de como boas intenções políticas podem não ser convertidas em boas práticas.
Em 2023, Portugal avançou com um novo paradigma de política de imigração: a separação entre a função policial e a função administrativa do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Como consequência, por um lado, as funções policiais, de controlo de fronteira e investigação foram transferidas para a Polícia de Segurança Pública (PSP), a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia Judiciária (PJ). Por outro lado, a função administrativa ficou sob a responsabilidade de uma nova estrutura, a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), junto com o Instituto dos Registos e do Notariado (IRN).
A mudança é um marco importante na gestão da imigração, mas também é simbólica: o facto de os imigrantes terem de resolver questões administrativas e documentais num serviço de segurança, como era o SEF, reforçava a ideia de que a imigração é um risco, um perigo ou um crime. Além disso, não fazia sentido ou era justificável que um imigrante que precisasse renovar os seus documentos tivesse de o fazer num serviço com atribuições policiais. As questões de fronteira e investigação, sim, são uma questão de segurança, mas devem ser sempre conduzidas a partir de uma perspetiva que salvaguarde os direitos humanos. Portanto, essa mudança representa uma quebra fundamental do falso nexo entre imigração e segurança.
No entanto, a transição do SEF para a AIMA tem sido um exemplo de como boas intenções políticas podem não ser convertidas em boas práticas, e o Governo, que ainda era de maioria absoluta do PS, deu uma lição de como não fazer uma transição de estrutura administrativa na área das migrações. É esperado que um processo transitório seja complexo, com dificuldades e ajustes, afinal, há um grande empenho político e da administração pública ao conduzir uma mudança dessa dimensão na gestão das migrações. Contudo, a forma como o processo de transição tem sido conduzido desumaniza os imigrantes, abre margem para problemas de coesão social e de vulnerabilidade, cria lacunas procedimentais nos serviços competentes, não considera o trabalho dos funcionários públicos que estão na linha de frente e cria uma bolsa de imigrantes em situação irregular.
Ora, este cenário caótico tem impossibilitado que os imigrantes tenham acesso aos seus direitos, aos serviços públicos e a uma vida digna, visto que a vivência quotidiana, como o direito de livre circulação no Espaço Schengen, de trabalho, de realização de contrato de habitação, por exemplo, está dependente da autorização de residência. Acrescem as dificuldades para as marcações de renovação de autorização de residência, do reagrupamento familiar, a inoperância do sistema para as renovações automáticas e os processos de regularização. Por mais que o prazo de validade dos documentos tenha sido estendido, na prática, fica a faltar a garantia dos direitos, visto o desconhecimento dos serviços, a discriminação dos imigrantes, a dificuldade da política no papel ser implementada e a insegurança jurídica.
Mais ainda, a transição do SEF para a AIMA acontece num momento migratório, político e social de grande complexidade. Na imigração, o nosso país vivencia o aumento e diversificação dos fluxos, sobretudo com origens no leste asiático, e aprovou alterações legislativas consideráveis, como as autorizações de residência da CPLP e o visto de procura de trabalho, que estão a ser alvos de contestação na União Europeia (UE). Acresce a ansiedade legítima dos imigrantes, que não receberam nenhuma comunicação oficial sobre como ficariam os seus processos pendentes; das associações de imigrantes, que não foram envolvidas e não tinham informações para orientar os seus utentes; e dos funcionários do IRN e ACM, que passaram a ter outras competências e estão em fase de aprendizado.
No cenário político, tivemos eleições antecipadas e a imigração foi altamente politizada. Formou-se um novo Governo sem maioria liderado pelo PSD, que parece assentar-se numa visão securitária das migrações e que extinguiu a Secretaria de Estado para a Igualdade e as Migrações. Além disso, o número de deputados do partido de direita radical populista aumentou expressivamente. Do ponto de vista social, a maior complexidade que se coloca neste momento é a crise da habitação, que afeta duramente as pessoas com menores rendimentos e mais vulneráveis.
Ou seja, é neste cenário que uma transição importante e bastante atrapalhada acontece. A ideia que fica é a de que somos um ótimo país em fazer políticas de imigração, mas sem pensar se existem meios necessários para executá-las e como serão implementadas pela administração pública. Na visão do utilizador, a transição do SEF para a AIMA parece não ter sido planeada, pelo menos não bem planeada. Quem observa de fora tem a sensação de que as respostas aparecem na medida em que surgem os problemas e "vai-se andando".
Um dos grandes problemas do antigo SEF que transitaram para a AIMA foi a sobrecarga de trabalho dos funcionários face à demanda pelos serviços. Mas a AIMA iniciou as suas funções com 347 mil processos pendentes e prometendo fazer uma megaoperação no primeiro trimestre de 2024 para recuperar as pendências. No entanto, até o momento não há avanços. Além disso, o Governo anterior (PS) declarou que iria contratar 190 funcionários para complementar o quadro de 740 funcionários da AIMA e investir a nível de infraestrutura digital. Agora, com um novo Governo (PSD) e instabilidade política, ficam dúvidas.
É urgente que a AIMA funcione para dar respostas efetivas e garantir os direitos dos imigrantes, uma vez que a instabilidade política, os problemas sociais e a falta de respostas de integração podem desencadear ainda mais dificuldades à transição. Esperamos que haja celeridade e resolução das pendências, pois o Estado possui responsabilidades para com os seus cidadãos e, se existem áreas em que o seu serviço é precário ou inexistente, é necessário repensar a eficiência e a capacidade de gestão administrativa.
Portugal é reconhecido internacionalmente pela política exemplar de imigração, mas na concretização prática não se verifica o mesmo nível de compromisso. Quando se trata de direitos, é preciso ser exigente. Por mais que possa haver alguma compreensão sobre as dificuldades de um processo de transição, o que está em causa é a vida, a dignidade e os direitos dos imigrantes. O direito a uma vida digna é inegociável. Enquanto sociedade não podemos aceitar direitos a menos, nem meios direitos.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico