Abril: verdadeiramente o quê, para sempre?
Com ou sem cravo na lapela, mais ou menos politizados, mais ou menos efusivos, seria bom que ganhássemos consciência sobre o real valor da paz, do pão, da democracia, da liberdade e da educação.
Quando Mário Soares morreu e o seu cortejo fúnebre passou por algumas ruas de Lisboa, saí do escritório e, junto ao Largo do Rato, fui vê-lo a passar. Não aplaudi, que não sou de aplausos nem de grandes manifestações públicas, mas fiquei, algo emocionado, ao ver os seus despojos mortais a passarem, no que era e foi a sua última viagem.
Nunca votei em Mário Soares, mas entendi que, por mais ridiculamente pequena e sem absolutamente qualquer efeito que não em mim próprio, aquela era a forma de eu lhe prestar homenagem e, sobretudo, agradecer o que ajudou a fazer por mim, pela minha família, pelos meus amigos e por tantos milhões de pessoas como nós.
Numa espécie de oração, agradeci por isso enquanto ele passava e pensava ao mesmo tempo sobre o significado que aquele homem teria para a multidão que então se juntara no Largo do Rato e noutras ruas de Lisboa. Seria apenas folclore? Ou uma homenagem tão sentida como a minha, porventura bem mais sentida ainda? Ou apenas curiosidade? Nunca o saberei. Mas alguma razão haveria para que toda aquela gente se tivesse dado ao trabalho de ali estar, tal como eu.
Há cerca de um ano, um amigo meu contou-me que, no dia 25 de Abril, viu o José Pacheco Pereira sentado numa esplanada da Praça do Príncipe Real, em Lisboa, com um cartaz de cartão manuscrito a dizer “Viva o 25 de Abril”, assim, sem mais, sem qualquer outra alusão ou manifestação que não aquela pouco visível e nada sonora.
Há umas semanas assisti a um concerto do Sérgio Godinho feito a pensar no cinquentenário de Abril, no qual pude assistir a muita gente que, sem efusivas manifestações, me parecia visivelmente emocionada.
E tantos exemplos haverá por aí fora de pessoas que estão e estarão serenamente agradecidas ao 25 de Abril de 1974 por ter-lhes dado a possibilidade de viverem em liberdade e democracia. Para isso não são precisos festejos especiais – não que tenham algum mal – ou efusivas manifestações, apenas o reconhecimento tranquilo do quanto se ganhou.
No concerto do Godinho, tantas palavras, versos e canções ali se ouviram com frases tão ridiculamente básicas quanto democracia, paz, pão, liberdade, educação, tudo tão básico nos dias que correm, que, de tão básico, nem nisso pensamos.
Estafada está a afirmação que as gentes de hoje não pensam nisso porque não viveram em ditadura e opressão. É verdade. Tenho quarenta e nove anos e não vivi um único dia que não fosse em paz e em liberdade absoluta, em democracia, que não tivesse acesso ao que me apetecesse, a educação e a quaisquer bens por mais supérfluos que fossem.
Pergunto-me, por outro lado, se as pessoas mais velhas agradecem todos os dias por Abril e por quem o tornou possível, cientes da importância que tal facto teve nas suas vidas. Julgo sinceramente que não, nem teriam de o fazer. Há um adquirido que é bom que o seja, sob pena da vida se tornar um fardo demasiado pesado.
Porém, sendo tudo isto verdade, é bom reconhecer o que aconteceu e não o dar por adquirido para sempre.
Paradoxalmente, vivemos hoje como se não houvesse amanhã, ao mesmo tempo que queremos ser imortais. Consumimos, esgotamos, escavamos e exploramos a pensar em nós e nos nossos e não nos outros.
Julgo que quem fez o 25 de Abril não pensou apenas em si mesmo nem nos seus. Pensou e agiu convictamente a pensar no bem comum, no que era ou pensava que era melhor para todos. Uns de uma maneira outros de outra, sim, mas com esse propósito comum.
Assim, neste ano que celebramos os 50 anos do 25 de Abril, sinto alguma comoção ao pensar nas conquistas tão verdadeiras quanto frágeis que datam dessa altura e espanto-me a cada dia com a voracidade com que vivemos a nossa vida colectiva, ao ponto de pôr tudo isso em cheque.
Infelizmente, não é nenhum exagero. Assim como, quase sem darmos conta, as demagogias grassam legitimadas pelo voto, também as guerras e o nuclear estão mais presentes do que nunca desde a Segunda Guerra Mundial.
Nestes 50 anos de Abril, com ou sem cravo na lapela, mais ou menos politizados, de forma mais ou menos efusiva, seria bom que ganhássemos definitivamente consciência sobre o real valor da paz, do pão, da democracia, da liberdade e da educação. Não apenas invocá-los para comemorar uma data, mas vivê-los e difundi-los a cada dia, com a consciência exacta que tudo isso nos pode fugir entre os dedos e, porventura, mais rapidamente do que pensamos.
Para que nos próximos cinquenta anos tudo isso continue a ser tão presente e vivo quanto se tornou a partir de 25 de Abril de 1974.