Mulheres afegãs tornam-se youtubers para fintar proibição de trabalhar imposta pelos taliban

Taliban impuseram restrições à actividade profissional das mulheres, mas elas estão a contornar a regra usando a tecnologia para ganharem dinheiro em casa. Mas temem que os canais sejam fechados.

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Hayat disse ter enfrentado hostilidade por causa do seu canal e, por isso, usa uma máscara médica e óculos de sol para sua segurança quando, por vezes, filma no exterior SAMIULLAH POPAL / EPA
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A sua sala de estar está muito longe das salas de cinema movimentadas e bem iluminadas que outrora adorava, mas Setaish Hayat diz que fazer vídeos do YouTube em casa é a segunda melhor opção no Afeganistão, onde os editais taliban têm confinado cada vez mais as mulheres a casa.

Hayat, de 21 anos, era uma actriz em ascensão no cinema e na televisão locais até que os taliban tomaram o poder em 2021 e começaram a emitir decretos sobre as mulheres, que incluíam a proibição de produzir séries televisivas com actrizes e a imposição do uso de um hijab rigoroso às mulheres que apresentavam as notícias.

Actualmente, Hayat cria cerca de 30 vídeos por mês — sobre temas como a culinária, a moda e a maquilhagem, bem como conteúdos com a sua família —, o que a torna uma das mais bem-sucedidas de um número crescente de mulheres no Afeganistão que procuram ganhar a vida na Internet.

"Não utilizamos qualquer equipamento especial, como câmaras, luzes, apoios ou adereços sofisticados. Gravamos os programas com os nossos telemóveis", disse Hayat, cujo canal no YouTube já conquistou mais de 20.000 subscritores desde o seu lançamento em Setembro passado.

Hayat disse ter enfrentado hostilidade por causa do seu canal e, por isso, usa uma máscara médica e óculos de sol para sua segurança quando, por vezes, filma no exterior. "É um grande desafio para as raparigas e mulheres que trabalham fora de casa, especialmente as que aparecem nas câmaras e fazem conteúdo para o YouTube", disse Hayat à Fundação Thomson Reuters a partir de Cabul.

Hayat disse que a maioria dos seus espectadores se encontra nos Estados Unidos, Canadá, Dinamarca e Austrália, com audiências também na Turquia, Paquistão e Afeganistão. Recusou-se a dizer quanto ganhava, mas disse que era o suficiente para sustentar a sua família. As sanções internacionais limitaram drasticamente as transacções com os bancos afegãos, pelo que a maioria dos criadores de conteúdos do YouTube tem amigos no estrangeiro que passam os lucros através de empresas de transferência de dinheiro.

"Controlo" taliban

Os taliban impediram a maior parte das funcionárias afegãs de trabalhar nas agências de ajuda humanitária e fecharam salões de beleza, colocando dezenas de milhares de pessoas no desemprego. Proibiram também o acesso das mulheres aos parques e limitaram as viagens das mulheres sem um tutor masculino.

A maioria das raparigas e das mulheres foi impedida de frequentar o ensino secundário e de ir para a universidade. "Numa situação em que as mulheres estão impedidas de trabalhar nos meios de comunicação social, os canais do YouTube são uma boa opção e, através deles, também posso pagar as minhas despesas", disse Maina Sadat, uma antiga estudante de Direito que começou a criar vídeos depois de ter sido impedida de ir para a universidade.

O regresso súbito dos taliban ao poder inverteu duas décadas de esforços ocidentais para aumentar as oportunidades económicas para as mulheres. Os taliban afirmam que respeitam os direitos em conformidade com a lei islâmica.

Fawzia Koofi, uma activista afegã dos direitos das mulheres que foi baleada no braço pelos taliban em 2020, afirmou que os canais do YouTube não só proporcionam rendimentos, como também servem de meio para as mulheres comunicarem as suas mensagens, experiências e aspirações.

"Todas as mulheres no Afeganistão têm um telemóvel e estão ligadas ao mundo. Como é que se pode travar a geração do poder?", perguntou ela a partir da sua nova casa em Londres.

No entanto, muitas mulheres, incluindo Hayat, receiam que os taliban possam encerrar os canais do YouTube que não tenham uma licença de difusão do Ministério da Informação e da Cultura, que é obrigatória para os influenciadores das redes sociais e os criadores de conteúdos.

"Os taliban estão a tentar exigir que todos os canais do YouTube que operam no Afeganistão obtenham uma licença", disse Shadab Gulzar, vice-director da União de YouTubers do Afeganistão. "Uma vez licenciados, estarão mais sob controlo e obrigados a operar de acordo com compromissos assinados", alertou.

Sobrevivência

Os taliban garantiram às YouTubers que não têm nada a temer se satisfizerem os critérios para a obtenção de uma licença, que incluem um diploma de jornalismo e três anos de experiência profissional — requisitos muito difíceis de cumprir pelas mulheres se não tiverem estudado e trabalhado antes da chegada dos taliban ao poder.

"As suas publicações não devem contradizer o sistema islâmico e os valores religiosos, e devem abster-se de preconceitos religiosos e étnicos", disse Abdulwahid Ryan, porta-voz do Ministério da Informação e da Cultura. "Quanto a outros aspectos, incluindo o conteúdo dos seus programas, têm rédea solta", disse, acrescentando que uma licença custa 4000 afeganes (52,39 euros).

O porta-voz disse que, embora não tenha a certeza do número de youtubers do sexo feminino no Afeganistão, existem mais de mil canais em funcionamento e 250 têm licenças emitidas.

Shadab Gulzar afirmou que os canais do YouTube se tornaram uma fonte de rendimento significativa para muitas mulheres, "sendo que a maioria delas consegue cobrir as suas despesas de subsistência" através dos seus conteúdos.

Entre cerca de 10% e 15% de todos os youtubers afegãos ganham o equivalente a entre 1400 e 1880 dólares por mês. Um pouco mais de metade ganha uma média de até 470 euros, de acordo com os seus dados. São quantias decentes num país onde, de acordo com o Banco Mundial, o PIB per capita é ligeiramente superior a 330 euros.

As mulheres dizem que este tipo de trabalho em casa é fundamental para a sua sobrevivência. Quando Ayesha Niazi, antiga apresentadora de um noticiário televisivo, e o marido foram forçados a abandonar o jornalismo, recorreram ao YouTube para ajudar a sustentar a sua jovem família.

"Aparecer no ecrã nas actuais circunstâncias do Afeganistão não é isento de riscos. Mas tínhamos de fazer alguma coisa para gerar rendimentos", disse Niazi, que faz vídeos culturais e históricos três vezes por semana no YouTube e ganha cerca de 282 euros por mês. "Como mãe, não podia ver os meus gémeos a passar fome."