Um futuro melhor exige maior compromisso com quem ficou mais para trás

As disparidades persistem nos sistemas de saúde e devem ser corrigidas. O racismo, o sexismo e outras formas de discriminação continuam a impedir ganhos maiores na saúde sexual e reprodutiva.

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Os dados dos relatórios sobre população e desenvolvimento deveriam provocar uma ação imediata, individual e coletiva, concertada e costurada com esperança. Oferecendo a cada pessoa, em situação privilegiada, a “experiência sensorial” de sentir o que quase metade das mulheres de todo o mundo vivenciam, a sofrer! Assim, a mudança acontecia!

“Vidas entrelaçadas, fios de esperança: acabar com as desigualdades na saúde e nos direitos sexuais e reprodutivos”, relatório do Fundo das Nações Unidas para a População, hoje apresentado mundialmente, assinala os 30 anos da Conferência Internacional sobre a População e o Desenvolvimento, onde governos de 179 países acordaram que a saúde e os direitos reprodutivos são pedras fundamentais para a realização dos Direitos Humanos, reduzindo a pobreza.

Vem lembrar e celebrar os avanços:

  • A taxa de gravidez não intencional caiu quase 20%;
  • Mais de 60 países aumentaram o acesso ao aborto seguro;
  • Mais de 160 países aprovaram leis contra a violência doméstica;
  • Duplicou o número de mulheres que usam contraceção.
  • E desde 2020 as mortes maternas diminuíram 34% e a taxa de gravidez adolescente caiu um terço.

Mas vem também, e sobretudo, alertar e apelar à ação!

O progresso não foi suficientemente rápido, nem chegou a todas as pessoas. Um futuro melhor exige maior compromisso com quem ficou mais para trás:

  • A violência baseada no género continua em todos os países.
  • Desde há oito anos que não se regista uma redução da mortalidade materna e, num número alarmante de países, as taxas estão mesmo a aumentar. São cerca de 800 mulheres a morrer todos os dias por razões associadas à gravidez e parto e quase todas essas mortes são evitáveis.
  • Um quarto das mulheres não pode dizer NÃO a sexo com o marido ou parceiro.
  • Cerca de metade das mulheres não pode tomar decisões sobre a sua saúde e uma em cada dez não pode escolher métodos contracetivos.

A causa? A desigualdade. As diferenças de poder e de oportunidades relacionadas com género, situação económica, etnia, orientação sexual e deficiência são barreiras que limitam drasticamente as escolhas.

As disparidades persistem nos sistemas de saúde e devem ser corrigidas. O racismo, o sexismo e outras formas de discriminação continuam a impedir ganhos maiores em matéria de saúde sexual e reprodutiva.

Os dados são contundentes. As mulheres e as meninas em situações de pobreza, pertencentes a grupos minoritários, étnico-raciais ou em contextos de conflito, têm maior probabilidade de morrer por falta de cuidados de saúde atempados.

As mulheres de ascendência africana são mais vulneráveis aos maus tratos obstétricos e a impactos negativos na saúde materna. Como a sua morte.

As normas que perpetuam a desigualdade de género continuam incorporadas nas infraestruturas de saúde, como o desinvestimento persistente em equipas de obstetrícia, maioritariamente femininas.

As mulheres e as raparigas com deficiência enfrentam até dez vezes mais violência baseada no género, e têm menos acesso à informação e a cuidados sexuais e reprodutivos.

As pessoas LGBTQIA+ sofrem todos os dias discriminação, estigma e violência.

Num mundo de enorme riqueza e com soluções comprovadas, esta disparidade revela uma falta gigante de vontade de fazer o correto. As ideias e os recursos precisam de ter em conta as pessoas que há demasiado tempo são negligenciadas por políticas públicas que as esquecem.

O ano passado, numa missão que fiz a Timor Leste enquanto embaixadora de Boa Vontade, conseguimos o contributo de 100.000 € da Cooperação Portuguesa para que o UNFPA apoie centros de cuidados básicos de emergência obstétrica e neonatal espalhados pelo país. Um pequeno passo que salvará muitas vidas.

Para abordar causas fundamentais das desigualdades, os sistemas de saúde devem fornecer serviços que tratem e capacitem as pessoas, que respondam à sua diversidade e respeitem a sua autonomia corporal. As desigualdades sistémicas e interseccionais têm de ser resolvidas: económica, social e politicamente.

O Parlamento Europeu aprovou, há dias, a inclusão do direito das mulheres ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, agora a exigência e vigilância são mais elevadas.

Hoje, com os ventos rançosos que se fazem sentir, é importante escrever vezes sem conta: em Portugal, desde 2007, a legislação (eu estava “lá” e por me ter manifestado publicamente recebi muitas cartas de ódio) permitiu reduzir a zero as mortes maternas associadas ao aborto. E o número de interrupções voluntárias da gravidez por decisão das mulheres tem também diminuído, ao contrário do que é frequentemente apresentado por iniciativas deliberadas de contrainformação.

Em Portugal, graças ao SNS, estamos longe da realidade de há 50 anos (73,4 mortes de mulheres por cada cem mil nascimentos). Os dados de 2021 dizem-nos que não podemos desistir (8,8 mortes de mulheres por cada cem mil nascimentos).

Também as infeções sexualmente transmissíveis como gonorreia, clamídia e sífilis dispararam cá e na Europa, sobretudo nos jovens entre os 20 e os 24 anos.

São alguns dos chamados desafios mundiais, mas que são sempre mais desafiantes para quem é mais esquecido, violentado e silenciado: mulheres de todas as idades e origens.

Se queremos cumprir as metas da Agenda 2030, temos de sustentar os compromissos com fundos suficientes, sistemas e programas adequados à escala das pessoas e das suas realidades.

Sociedades pacíficas, resilientes e justas dependem de pessoas saudáveis, com poder de decisão e empoderadas.

Não me parece que haja desculpa para não fazermos o que já sabemos que coloca todas as pessoas num patamar de igualdade que lhes permita viver em pleno o seu potencial.

Como cada uma ou cada um de nós deseja para si. Tão simples.

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