Montenegro e Camões

O discurso da tomada de posse de Luís Montenegro acaba, apoteoticamente, com uma citação d’Os Lusíadas. Fiquei atónita: Camões desejou longos tempos ao Governo?

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Nascida e criada antes de abril de 74, ensinaram-me na escola o Camões do Estado Novo. Era a voz do nacionalismo extremo, da epopeia imperial, da exaltação da pátria contra tudo e contra todos. Usado sem vergonha pelos defensores do “orgulhosamente sós”. Para minha felicidade, vim depois a conhecê-lo melhor e aprendi que o poeta não era aquilo, era muito mais e muito melhor. Senti-me enganada e ficou-me a repulsa por aquele modo de usar Camões em vez de o ler como merece ser lido.

Lembrei-me disto ao ouvir o discurso de tomada de posse de Luís Montenegro, que acaba, apoteoticamente, citando Os Lusíadas. Diz ele que o poeta aí escreveu (e cito exatamente o que foi dito) “que tenha longos tempos o governo, a gente anda perdida e trabalhada, já parece bem feito que lhe seja mostrada a nova terra que deseja.” Fiquei atónita: Camões desejou longos tempos ao Governo? Como é possível ver de novo Camões usado desta maneira?

As palavras citadas são tiradas da parte final do discurso de Júpiter, no primeiro Concílio dos Deuses, convocado para decidir sobre o futuro dos navegadores de Vasco da Gama. Referindo-se a estes, diz Júpiter: “Prometido lhes está do Fado eterno, / Cuja alta lei não pode ser quebrada, / Que tenham longos tempos o governo/ Do mar que vê do Sol a roxa entrada. / Nas águas têm passado o duro Inverno, / A gente vem perdida e trabalhada. / Já parece bem feito que lhe seja / Mostrada a nova terra que deseja.” (I, 28).

Neste contexto, trata-se do seguinte: segundo Júpiter, aos portugueses está prometido que terão “longos tempos” o governo do mar do Oriente; ora, tendo já suportado muitos trabalhos, merecem chegar à Índia, a “nova terra” desejada.

No contexto do discurso de Montenegro, e dado ter sido truncado o texto original (que mencionava o “governo do mar”), o voto de longevidade parece aplicar-se ao seu Governo, em cuja posse falava. Voto que, até prova em contrário, estava bem longe da ideia de Camões...

Saltando da palavra “governo” para os três últimos versos da estância em causa, o orador reforça a ideia de que se trata do governo da gente “perdida e trabalhada”. Que gente? No sentido construído na citação de Montenegro, são os portugueses que, tendo seguido um rumo errado e passado grandes sacrifícios, verão agora a “nova terra”. Já não a Índia do velho Gama, mas a terra que o novo Gama, o atual chefe do Governo, lhes mostrará. A terra prometida. Para anúncio messiânico, não está mal...

Acontece que não foi nada disto que Camões disse. Acontece igualmente que faz parte das boas regras da citação não deturpar o que foi dito pelo citado. Eis-nos, portanto, perante um novo velho uso de Camões. Que aliás o previa, quando, bem no coração d’Os Lusíadas, no final do canto V, a propósito do desprezo pela poesia manifestado pelos senhores do Tejo, escreveu que “quem não sabe arte, não na estima”.

Jorge de Sena, que leu, estudou e amou Camões, escreveu um poema intitulado Camões dirige-se aos seus contemporâneos. Começa assim: “Podereis roubar-me tudo:/ as ideias, as palavras, as imagens, / e também as metáforas, os temas, os motivos, / os símbolos, ...” E acaba: “Nada tereis, mas nada: nem os ossos, / que um vosso esqueleto há-de ser buscado, / para passar por meu. E para outros ladrões, / iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.”

Uma nota final: segundo os estudiosos camonianos fidedignos, não se sabe ao certo a data do nascimento de Camões. Se, em 2024, o país vai pôr flores no seu túmulo (onde ele não está), é bom não esquecer que a melhor maneira de o homenagear é respeitá-lo e respeitar a sua obra. E sobretudo, lê-la.

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