Trocar o Orçamento pela democracia
Com menos de um por cento do PIB ter-se-ia dado o sinal adequado da valorização dos professores, dos polícias e militares e dos funcionários judiciais.
Não há, em Portugal, prova empírica mais dramática de que “há mais vida para além do défice” que o resultado das últimas eleições legislativas. O défice não existe, as contas do Estado são positivas, mas a extrema-direita entra em força superlativa na casa da democracia. Negar que há uma relação entre uma coisa e outra talvez seja divertido para quem se rendeu ao niilismo liberal. Para quem não desiste da ideia segundo a qual a democracia liberal é um projeto de progresso, paz e emancipação social e individual, a coisa já não é tão divertida.
Com menos de um por cento do PIB muito provavelmente ter-se-iam evitado os resultados eleitorais de 10 de março e o alastramento da doença democrática autoimune que a extrema-direita representa. Ter-se-ia dado o sinal adequado da valorização dos professores, dos polícias e militares e dos funcionários judiciais. Pelo menos para esses e para a sociedade, que em parte esses também simbolizam, ter-se-ia dado um sinal claro.
Na verdade não sabemos como as coisas seriam se fossem de outra maneira. Mas é razoável pensar que a valorização, material e simbólica, dos servidores do Estado, daqueles que estão no núcleo da construção da nossa vida coletiva e social, poderia atrasar e mitigar a emergência da extrema-direita. Parece, aliás, que o Governo emergente, do centro-direita conservador e democrático, é isso mesmo que vai fazer. Resultado irónico. Será a direita a fazer o que o PS recusou, que o levou a perder as eleições, mas agora com o apoio do PS.
O facto de o PS se preparar para apoiar, depois da derrota, as decisões que recusou na maioria, tem piada, mas exige pensar e agir em conformidade. Não é, porém, claro que isso ocorra. Apesar da determinação das lideranças (como parece ser o caso, agora, no PS), demasiadas vezes os partidos políticos (e outras organizações) tendem a lidar com os fracassos e os erros, sobretudo os mais clamorosos, com negação, autoindulgência e justificações had hoc e post factum, usando epiciclos sobre epiciclos justificativos, até à queda de todo o sistema. A questão é que ou o PS muda, mitigando e ultrapassando seriamente o anquilosamento aparelhístico, mental e politico (diagnosticado ad nauseam) ou a coisa pode correr ainda pior. Eu acredito que pode correr melhor mas, na verdade, como se vê, não tenho a certeza disso.
É difícil recusar que a extrema-direita progride onde, na democracia, faltam os resultados. Desde logo os resultados da distribuição da riqueza. As condições materiais de vida continuam a ser o preditor mais razoável do comportamento deliberativo das populações. Quando Aristóteles se detém, cuidadosamente, a defender e relevância da classe média, aquela que tem uma “riqueza mediana”, para a sustentação de uma cidade virtuosa, fá-lo, escreve na Politica, porque é a classe média “a que mais facilmente obedece aos ditames da razão”.
Mas as coisas mudaram, desde Aristóteles. As condições materiais de vida já não são, por si só, suficientes para a sustentação da racionalidade e da “amizade” públicas. As expectativas de vida e o confronto súbito com a diferença e o progresso (as migrações “fáceis” e massivas, a ascensão definitiva da mulher ao mundo e ansiedade masculina, etc), modeladas pelo complexo comunicacional internacional, promovendo ativamente a fragmentação e atomização sociais, eliminando toda a ideia de hierarquia de saber, de autoridade legítima, de conhecimento histórico e até de bondade pessoal, exigem muito mais que resultados económicos. Exigem, ainda, um reforço das condições da vida institucional e um esforço de simbolização e criação de atratores simbólicos, que chamem a atenção para o que é verdadeiro, bom e belo. As tarefas da política são, hoje, imensas.
Não há, porém, que ter ilusões. O complexo comunicacional internacional pode mais que as escolas e as professoras, as mães e as famílias, os partidos democráticos-liberais e as suas lideranças (quando não sucumbem à malfeitoria), os órgãos de comunicação sóbria e racionalmente editados. Só regulando e limitando a sua ação será possível um combate deliberativo mínimo, uma competição pelas ideias de bem comum e liberdade.
Entretanto, ou em simultâneo e em resistência, há que fazer o que se deve e pode: apostar decisivamente na dignificação dos professores e da escola pública, o local decisivo da racionalidade, da hierarquia do conhecimento, da aprendizagem da democracia e da possibilidade de ascensão social; nas figuras da autoridade do Estado, em particular de uma Justiça independente do poder político; apoiar a imprensa livre; enrijecer e fortalecer a infraestrutura económica; cuidar da saúde para todos; pelejar por uma Europa Unida, forte, livre e igualitária; dar esperança real aos jovens.
Em suma, convinha não trocar mais ou menos um ponto do PIB pela democracia.
O autor escreve de acordo com o novo acordo ortográfico