Do lado de cá, aquém da democracia
Criar um círculo nacional de compensação, ou garantir de outra forma que todos os votos contem, é hoje um imperativo de igualdade política.
Do lado de cá somos quase 700 mil. Ainda antes de serem conhecidos os resultados dos círculos da emigração, já somos os mesmos que em 2022, quase tantos quantos em 2019, e mais do que em qualquer outro ano de legislativas em Portugal. Deste lado, aquém da democracia, ficou um em cada nove dos votos validamente expressos caídos nas urnas a 10 de março. Do lado de lá, ocupa os correspondentes lugares no hemiciclo quem, embora legitimamente eleito, já não representa a vontade popular.
Todos os que acreditam na democracia e nos caminhos que ela abre têm o dever de dela cuidar. E deviam importar-se com a adequação do seu método à nobreza dos seus fins. A forma como elegemos os nossos representantes na Assembleia da República tem de mudar, sob pena de aprofundarmos irreparavelmente a distorção da voz do povo que a mesma tem provocado e de deixarmos ao abandono, de vez, as regiões do país que tem esquecido.
O sistema de distribuição de mandatos pelos círculos eleitorais que a nossa lei prescreve distorce a voz do povo porque (i) desincentiva a participação eleitoral de uma parte da população, (ii) ignora os votos de outra e (iii) condiciona objetivamente o sentido de voto da restante. Tudo o que, no final de contas, do lado de lá, senta no Palácio de São Bento uma assembleia bem diferente da que resultaria da livre e direta expressão das convicções dos portugueses. Tudo o que, eleição atrás de eleição, perpetua um círculo vicioso de privilégio à entrada do parlamento que puxa os grandes escada acima e empurra os pequenos escada abaixo.
E abandona as regiões esquecidas do país, onde se inserem os círculos mais pequenos, desde logo, porque o número de lugares a distribuir leva a que não se converta em mandatos uma percentagem ainda maior de votos, que assim permanecem do lado de cá. Por outro lado, porque limita ainda mais intensamente a liberdade política de quem aí vive, relegado à condição de cidadão de segunda, ao reduzir a sua palavra à escolha entre os dois ou três partidos previsivelmente mais votados. E acima de tudo porque faz dessas regiões, já fustigadas por uma multiplicidade de desafios sociais, económicos e ambientais, terreno politicamente pouco fértil e pouco disputado em campanha eleitoral – ou seja, desprovido da capacidade de influência no centro da decisão política nacional de que tanto precisa para resolver os seus problemas. Com tão pouco em jogo e beneficiando de uma minimização estrutural do risco, os partidos tradicionalmente maioritários – quais donos do sistema eleitoral – pouco ou nada têm de fazer para manter o monopólio da representação política em distritos onde, por vezes, mais de metade da população nem confia neles o seu voto.
É o próprio sistema que, insuflando esses partidos, reproduz a sua vocação maioritária, à custa do receio que impõe a todos nós de que o nosso voto fique do lado de cá a fazer número. Sob o espectro do voto desperdiçado, circularmente, o historial de resultados eleitorais molda as expectativas, as expectativas condicionam as intenções de voto, as intenções de voto refletem-se nas sondagens e as sondagens reforçam aquelas expectativas iniciais que, traduzidas no voto, replicam os resultados eleitorais historicamente registados. E é fundamentalmente do receio de que o nosso voto não conte que se alimenta o discurso (explícito ou implícito) do voto útil, que os privilegiados do sistema repetem ad nauseam a cada oportunidade como se de um mal necessário se tratasse, mas cujos pressupostos, até hoje, não se têm mostrado interessados em alterar.
Em geral, quando não argumentam com o perigo da proporcionalidade para a governabilidade, uma de duas: ou se socorrem da extemporaneidade da discussão, ou recorrem à amálgama para, embrulhando-a num debate mais amplo sobre a reforma eleitoral, chutarem a bola para a frente. Na preservação do seu privilégio, é este o papel a que os donos do sistema eleitoral se têm prestado.
Assustar as pessoas com um cenário de ingovernabilidade, para além de constituir um atestado de incapacidade política para o diálogo próprio de uma democracia parlamentar, é – salvo o devido respeito – um insulto à inteligência de qualquer cidadão atento. Primeiro, como é bom de ver, a dificuldade de formar maiorias de governo prende-se mais com a existência de três blocos sobrerrepresentados do que com a justa representação na Assembleia da República dos partidos que hoje são empurrados escada abaixo. E depois quais foram, afinal, os nossos melhores governos? Os que se sustentaram nas maiorias absolutas que o sistema eleitoral facilitou? Ou os que, em maioria relativa e no mútuo escrutínio entre parceiros, exigiram compromissos bilaterais ou plurilaterais?
No início de uma nova legislatura, em que o mote de boa parte da assembleia é salvar a democracia, não parece que a alteração da lei para que se considerem os votos de toda a gente possa ser extemporânea. Nem parece haver margem para que, amalgamando-a com outros temas de difícil discussão do lado de lá, se remeta para outro dia a miragem de uma reforma global do sistema eleitoral. Isto pode discutir-se agora, independentemente do resto.
A fuga a este debate não está à altura do estatuto de partido grande de que se arrogam os beneficiários do statu quo. A democracia implica que os seus intervenientes se empenhem em aperfeiçoá-la permanentemente – é assim que ela se realiza. E essa tarefa exige dos que são favorecidos pelas suas imperfeições a mesma dedicação na respetiva correção, na reposição da justiça do método, que a dos que elas diretamente prejudicam. Em nome da nobreza dos seus fins. Enquanto fugirem continuarão a contribuir para a sua corrosão, em troca de meia dúzia de feudos eleitorais e de ocasionais vitórias retumbantes alcançadas a expensas da instrumentalização de quem não pode votar como quer. Façam-no, se não por espírito democrático, ao menos por embaraço.
Criar um círculo nacional de compensação, ou garantir de outra forma que todos os votos contem, é hoje um imperativo de igualdade política. Entre os partidos, que o sistema não deve puxar para cima nem empurrar para baixo. E entre todos os portugueses, cuja liberdade na cabine de voto deve ser a mesma em Coimbra, Lisboa ou Portalegre. É que convém que o povo seja mesmo sempre quem mais ordena, e não apenas quando vota nos do costume. Do lado de cá, aquém da democracia, somos quase 700 mil. Do lado de lá, os que querem salvá-la e conquistar o povo talvez possam começar por não ter medo da genuína expressão da sua vontade.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico