Mais de 800 signatários defendem que bienal de Coimbra fique no mosteiro que poderá virar hotel
José Pedro Croft ou Vera Mantero advogam pela manutenção da Anozero, a bienal de arte de Coimbra, no Mosteiro de Santa-Clara-a-Nova, cujo futuro pode passar pela conversão num hotel de cinco estrelas.
No espaço de 24 horas, a Anozero, bienal de arte contemporânea de Coimbra, já reuniu mais de 800 signatários de uma carta aberta que defende a permanência da ligação do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova à bienal. O monumento público, que tem sido o principal espaço da Anozero desde 2017, está inscrito no Revive, programa governamental que, conforme explicita o Turismo de Portugal no seu site, “abre o património ao investimento privado para o desenvolvimento de projectos turísticos, através da concessão da sua exploração por concurso público”. Existe neste momento uma entidade interessada em transformar o edifício numa unidade hoteleira de cinco estrelas, o que compromete a sustentabilidade da bienal.
O islandês Ragnar Kjartansson, que no ano passado apresentou Não Sofra Mais, a sua primeira exposição em Portugal, no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, é um dos subscritores do manifesto, bem como artistas nacionais como Ângela Ferreira, Carlos Bunga, Fernanda Fragateiro, José Pedro Croft, Pedro Cabrita Reis ou Rui Chafes. Os arquitectos Gonçalo Byrne e João Luís Carrilho da Graça, a coreógrafa e bailarina Vera Mantero, a historiadora de arte Hedwig Fijen, co-fundadora e directora da importante bienal europeia de arte contemporânea Manifesta, e os curadores Agnaldo Farias, Delfim Sardo e Filipa Oliveira também compõem a lista de signatários (que não é feita só de pessoas ligadas às artes, incluindo também advogados, empresários ou engenheiros civis ou informáticos, por exemplo).
Tornada pública pela Anozero esta sexta-feira, a carta já fora elaborada há alguns meses. Foi escrita por Rubens Mano e Luis Felipe Ortega, criadores brasileiro e mexicano, respectivamente, na sequência de um encontro de artistas na Bienal de São Paulo que envolveu vários nomes que já haviam participado na bienal conimbricense (como os próprios Mano e Ortega).
Os dois artistas (e, agora, os mais de 800 signatários que se lhes juntam) iniciam a carta com um enaltecimento do trabalho da Anozero, “um espaço onde a diferença e a relação entre diferentes formas de entender a vida, a arte e o presente se conjugam para enfatizar processos históricos em transformação”.
“Esta poderosa bienal tornou-se um importante palco no panorama artístico europeu, uma vez que representa um excepcional vector de difusão da arte portuguesa, acolhe um dos principais eventos da Península Ibérica e dá visibilidade às mais notáveis obras actualmente produzidas e apresentadas”, escrevem, antes de elogiarem ainda o “gesto arrojado” que constituiu a “ocupação” do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, que se encontrava devoluto desde que deixara de ser usado pelo Ministério da Defesa primeiro como quartel e, posteriormente, como museu militar.
A bienal, argumentam os subscritores, “é um dos eixos actuais mais promissores, oportunos e consolidados para a dinamização de reflexões entre os agentes da comunidade artística internacional”, que, sublinham, “não é uma comunidade localizada no aparelho ideológico da Europa Central, mas abriu um caminho sem retorno para expandir o pensamento crítico entre Portugal, a América Latina e o mundo” (a relação profícua da Anozero com artistas sul-americanos e latino-americanos é um dado notoriamente sublinhado por Rubens Mano e Luis Felipe Ortega).
Acreditando que a Anozero e o mosteiro “são em si mesmos uma entidade única” e que acabar com a sua relação seria apagar a identidade da bienal, da cidade de Coimbra e do mosteiro “como uma engrenagem que movimenta as dinâmicas vivas das práticas artísticas contemporâneas”, os signatários defendem a necessidade de manter o edifício como “um local onde, de dois em dois anos, intelectuais, curadores, artistas, estudantes, escritores, profissionais de várias disciplinas e cidadãos se encontram para pensar num mundo, revelar mundos e imaginar as condições em que estes podem acontecer”. O processo que abre a porta à sua exploração para fins turísticos “desconsidera o papel e a importância” da bienal na sua “recuperação simbólica”, dizem.
Organização não admite bienal “sem um espaço digno”
A quinta edição da Anozero vai acontecer entre os dias 6 de Abril e 30 de Junho. A programação, revelada no final de Fevereiro, inclui nomes como Adam Pendleton, Andrea Büttner, Carla Filipe, Castiel Vitorino Brasileiro, Cildo Meireles, Clara Menéres, Priscila Fernandes, Robert Filliou, Rosemarie Trockel, Sandra Poulson, Susanne Themlitz, Teresa Lanceta ou Yonamine. A bienal terá como tema O Fantasma da Liberdade, evocando simultaneamente os 50 anos do 25 de Abril e o centenário do Manifesto Surrealista.
Organizada pelo Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC) em conjunto com a Universidade de Coimbra (UC) e a autarquia, a bienal vai ocupar, além do Mosteiro de Santa-Clara-a-Nova, o CAPC, a Sala da Cidade da câmara municipal, a UC (Colégio das Artes, Jardim Botânico e Pátio das Escolas) e a estação ferroviária de Coimbra-B.
Ouvido pelo PÚBLICO no dia em que foi apresentada a programação, Carlos Antunes, director do CAPC, voltou a admitir a possibilidade de esta edição da Anozero ser a última. “Se tivermos de sair daqui, terei pena, porque acho que vamos sempre perder muito, mas só sairemos daqui para um lugar de grande dignidade. Uma coisa que nunca admitirei é a possibilidade de uma bienal pobre, fraca, sem um espaço digno que atraia as pessoas, e que vai definhando lentamente até se extinguir como uma vela. Isso não vai acontecer”, afirmou.
Carlos Antunes reconheceu que o mosteiro “claramente precisa de intervenção”, mas defendeu que, “até do ponto de vista ambiental”, a solução mais inteligente é “a mais leve”, que passa pela conservação do edifício e não pela sua conversão numa unidade hoteleira. “Faz sentido haver hotéis”, disse, “mas se calhar não onde existem bienais”.