Da exclusividade dos deputados aos manuais escolares: na luta anticorrupção, PS e IL desiludem, PAN surpreende
Escassez de medidas preventivas destinadas a promover a mudança de mentalidades, como a introdução desta matéria nos currículos escolares, é criticada por especialistas ouvidos pelo PÚBLICO.
Socialistas e liberais desiludiram, PAN surpreendeu pela positiva e as medidas destinadas à mudança de mentalidades ficaram, na maior parte dos casos, no tinteiro. Assim se pode resumir a análise dos programas eleitorais na vertente anticorrupção feita por três especialistas a pedido do PÚBLICO.
E se o investimento do Chega nesta matéria não é novidade nenhuma, nomeadamente no que respeita a medidas repressivas como o aumento das molduras penais – ou não fosse o seu lema “Limpar Portugal” –, já o detalhe com que os defensores dos animais apresentam as suas propostas contrasta com a aparente falta de empenho dos socialistas, que dedicam ao tema página e meia.
“Trata-se de um programa muito simples, com pouco destaque para as questões do combate à corrupção”, observa o presidente do conselho regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, João Massano, sobre as intenções do PS, que no seu entender representam “uma lógica de continuidade de medidas que já estavam planeadas, ou que já deveriam estar implementadas”.
Numa escala de zero a cinco, este dirigente só dá nota positiva a metade dos partidos com assento parlamentar: Livre, AD, Chega e PAN. O facto de a Iniciativa Liberal não ter um capítulo dedicado à questão leva-o a atribuir-lhe a pior nota de todas, um ponto.
Mas a falha que mais lamentam, não só João Massano como Joana Freitas, dirigente da Transparência Internacional, que também deu por esta lacuna da Iniciativa Liberal, relaciona-se com a escassez de medidas preventivas destinadas a promover a mudança de mentalidades. “O combate à corrupção começa na prevenção e na cultura. Por isso, é com desilusão que vemos que apenas dois partidos, o PAN e a AD, mencionam expressamente a inclusão nos programas de ensino escolar da consciencialização para o fenómeno da corrupção”, diz Joana Freitas. Já o Livre quer formação obrigatória para servidores públicos em questões de ética e transparência.
“De que nos servem grandes medidas de folclore quando não atacamos a raiz do problema?”, interroga João Massano, para quem é preciso responsabilizar não só quem exerce altos cargos, como também os elos mais pequenos desta cadeia. “A corrupção tem de ser combatida a partir da base, porque quem critica os políticos faz exactamente o mesmo que eles assim que lhe surgir uma oportunidade.” A falta de ideias no que respeita às práticas menos transparentes nas autarquias também preocupa o advogado.
A necessidade de medidas destinadas a mudar mentalidades é igualmente destacada pelo coordenador do Gabinete de Estudos Económicos, Empresariais e de Políticas Públicas da Faculdade de Economia do Porto, Nuno Torres, que concorda com os outros dois analistas: “Em matéria de corrupção, o PS acaba por não apresentar grandes novidades.”
De entre as propostas mais inovadoras, este especialista destaca a exclusão do acesso a apoios públicos e também da contratação pública das empresas sediadas em paraísos fiscais, medida defendida pelo BE e pelo PAN. A realização de uma auditoria a todas as transferências de jogadores e treinadores de futebol ocorridas desde 2015, bem como a divulgação da origem, do destino e dos beneficiários dos fluxos financeiros envolvidos e da titularidade efectiva dos capitais sociais das sociedades desportivas, é outra ideia dos defensores dos animais destacada por Nuno Torres, que elogia ainda a proposta da AD relativa ao confisco pelo Estado de bens resultantes de actividades proibidas.
“Pode ser ponderada, como alternativa ao enriquecimento ilícito, a criação legal de um mecanismo legal que visa permitir ao Estado recuperar bens adquiridos por particulares através de actividades ilícitas, independentemente de uma condenação penal do proprietário dos bens”, pode ler-se. Trata-se de uma acção cível “que se distingue pela sua natureza não penal, focando-se exclusivamente na desapropriação de activos ilícitos e sua subsequente reversão em favor do Estado, para fins de reparação social e reinvestimento em áreas prejudicadas pela criminalidade”. No programa do PSD-CDS-PPM, o mesmo investigador destaca ainda o uso da inteligência artificial no portal da Base, por forma a permitir a aplicação de sanções por incumprimento das regras da contratação pública.
Joana Freitas assinala que praticamente todos os partidos prometem regular o lobbying, à excepção do BE e da CDU. Os comunistas consideram que legalizar esta actividade equivale à legalização do tráfico de influência.
Reduzir os conflitos de interesse, através de um alargamento de impedimentos e incompatibilidades no exercício de cargos, criando ou fiscalizando as obrigações de reporte e pondo fim ou regulando as “portas giratórias” entre sectores público e privado e regulador e regulado, é também uma preocupação de vários concorrentes a estas eleições.
Deputados em exclusividade?
O PAN, por exemplo, fala em aumentar de três para oito anos o período de nojo para a passagem do exercício de cargos públicos para o sector privado relacionado com as funções exercidas, por forma a acautelar situações de especial sensibilidade, como as parcerias público-privadas e os contratos de concessão, que têm uma vigência de décadas. O BE fala em seis anos e o Chega vai mais longe ao querer proibir de trabalhar para quaisquer instituições tuteladas pelo Governo, também durante oito anos, os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, mesmo que se trate de funções não remuneradas.
Os defensores dos animais são os únicos a defender um regime de exclusividade para os deputados, nota Nuno Torres. “Existe aqui um senão: como conseguir, ainda assim, atrair gente qualificada para o Parlamento?”, questiona o investigador.
“Curiosamente, apenas a AD menciona um regime de incompatibilidade para o exercício de cargo público por exercício de prévias funções como magistrado judicial e do Ministério Público, sem no entanto sugerir o fim das portas giratórias neste sector, sendo os demais partidos omissos nesta questão tão essencial à separação de poderes e independência da justiça”, salienta a representante da Transparência Internacional, a quem a medida agradou.
Esta organização não vê com bons olhos medidas no sentido de maior criminalização e/ou repressão, com aumento dos limites máximos das molduras penais, ou que imponham uma desconfiança inerente ao exercício do cargo político. Também critica o hábito de legislar “no rescaldo de escândalos e casos mediáticos, como se de um penso rápido se tratasse, com pouca ou nenhuma consequência”. É o caso do questionário de escrutínio prévio dos futuros membros de governo, de que tanto se falou há pouco mais de um ano, aponta Joana Freitas, e que a esmagadora maioria dos programas eleitorais agora omite.
Alargar o direito de acção popular a matérias relativas à falta de transparência de todas as instituições ou organizações que, independentemente da sua natureza, prosseguem fins públicos é outra ideia do PAN que merece aplausos, desta vez de João Massano, por incentivar a participação dos cidadãos na vida pública. Tal como a proposta – desta força política e também da CDU – de reforçar os meios de combate ao crime de colarinho branco, em especial na Polícia Judiciária e no Departamento Central de Investigação e Acção Penal.
Responsável pela criação do Mecanismo Nacional Anticorrupção, no final de 2021, o PS propõe agora, passados mais de dois anos, dotar esta agência “de todos os recursos necessários para o efeito”, sem especificar quais. No que respeita à Iniciativa Liberal, Nuno Torres destaca a eliminação dos benefícios fiscais dos partidos e a aceleração dos licenciamentos para a construção de habitação, com os promotores a terem acesso ao estado dos processos e aos respectivos pareceres em tempo real.