Sem pressão da Igreja sobre o abusador “a probabilidade de reincidência é muito maior”

“Tem havido críticas ao Grupo Vita por também trabalhar com os agressores”, diz Rute Agulhas. “Estamos focados nas vítimas mas também a trabalhar com os agressores para prevenir a reincidência.”

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NFS Nuno Ferreira Santos
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Rute Agulhas é psicóloga e coordenadora do Grupo Vita, de acompanhamento das situações de abuso sexual de crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal, uma estrutura que entrou em funcionamento em Maio do ano passado, na sequência da extinção da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa.

Tanto a comissão independente como o Grupo Vita foram constituídos após um convite dirigido pelo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas: no primeiro caso ao pedopsiquiatra Pedro Strecht; e no segundo a Rute Agulhas. Depois de em Fevereiro ter apresentado uma proposta à CEP para aprovação do modelo de reparações financeiras às vítimas dos abusos, a psicóloga e coordenadora do Grupo Vita diz em entrevista ao PÚBLICO/Rádio Renascença que aguarda uma resposta para se pronunciar sobre formas de compensação financeira às vítimas que a solicitem.

O grupo Vita apresentou recentemente à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) uma proposta com os critérios para a atribuição de reparações financeiras às vítimas de abusos na Igreja. Noutra ocasião, disse que a solução encontrada será ajustar a compensação financeira a cada caso. De que forma pode isso acontecer?
Nós apresentámos essa proposta, no início do ano, a pedido da própria Conferência Episcopal. Fizemos um mapeamento e um levantamento daquilo que tem vindo a acontecer nos outros países e de outros modelos de reparação financeira que têm vindo a ser seguidos. Criámos uma proposta que nos pareceu adequada, justa e muito. O conselho permanente da CEP vai agora analisar, discutir internamente e reflectir. Estamos neste momento a aguardar essa resposta, para percebermos se será necessário fazer algum tipo de ajuste.

Quando será possível conhecer essa proposta?
Muito honestamente nós não sabemos. Entregámos a proposta na Conferência Episcopal e agora são eles que têm o ónus da reflexão e o ónus da decisão. Portanto, não sei quando nem como, nem de que forma é que saberemos essa decisão e como isto depois poderá vir a ser concretizado.

Quantas vítimas pediram uma compensação financeira?
Até ao momento, e desde Maio do ano passado quando o Grupo Vita entrou em funcionamento, temos 11 situações em que, de uma forma formal, explícita, esse pedido foi feito.

O pagamento destas reparações vai caber à CEP? Às dioceses?
Muito honestamente, não sei. São detalhes e tomadas de decisão que eu acredito sejam definidos depois de o modelo da reparação estar definido.

E o mesmo em relação aos valores de referência para esse pagamento às vítimas?
Sim, é muito prematuro falar-se porque, em primeiro lugar, seria mera especulação. Tem de se chegar a uma decisão. Essas questões farão sentido numa fase posterior.

Esperaria que, até ao momento, mais pessoas além das 11 que aqui referiu tivessem feito esse pedido?
Não esperaria. Primeiro, por toda a experiência que tenho na área do abuso sexual com vítimas, sei que há outras acções que podem ser sentidas como mais reparadoras que não propriamente uma compensação económica. E, depois, concretamente, para as pessoas que temos ouvido, que nos contactam, [também] não é a reparação financeira que é sentida como aquilo que é o mais reparador. Estamos a falar de 11 pessoas, num universo de 83 situações que nos chegaram até ao momento.

A atribuição da compensação implica uma validação do testemunho das vítimas?
Vai depender disso naturalmente, mas aí já estamos novamente a falar do processo que está ainda a ser pensado. Como é que essa validação vai ser feita? Quem é que a vai fazer e de que forma? Estamos nesta fase do processo.

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Estas pessoas que chegam ao grupo Vita coincidem com as que têm os seus testemunhos registados no relatório da Comissão Independente, ou não é possível saber isso porque os testemunhos anteriores são anónimos?
Nós perguntamos. Tentamos perceber se é a primeira vez que a pessoa fala sobre isso e, se já falou antes, em que contexto o fez. Conseguimos perceber que, deste universo [das 83 pessoas que nos procuraram] cerca de um terço já tinha contactado com a Comissão Independente previamente. Não é a maioria. Aquilo que algumas nos dizem é que, durante o ano em que a Comissão Independente existiu, ponderaram, mas tiveram dúvidas. Depois sentiram que aquela janela de oportunidade tinha desaparecido com a extinção da Comissão Independente. Assim, quando o grupo Vita surge é quase como uma segunda oportunidade [para essas pessoas]. Temos muitas pessoas que pensaram falar antes e não o fizeram mas estão a fazê-lo agora. Também motivadas pela necessidade de terem alguma voz e de romperem este silêncio que é um silêncio de décadas. As pessoas que escutámos têm, em média, um segredo de cerca de 40 anos ou 45 anos. São muitos anos em silêncio.

A dada altura, e voltando um pouco à questão do apoio psicológico, o grupo Vita falou da necessidade de se alargar a rede de psicólogos e de psiquiatras que acompanham as vítimas. Neste momento, essa rede de suporte é suficiente para dar resposta às solicitações?
Há quatro zonas do país ainda a descoberto: Évora, Portalegre, Guarda e a Madeira. São as zonas do país onde temos mais carência de profissionais e estes têm de ser profissionais especialistas, já com alguma experiência na área da violência sexual. Com base nisso, fizemos uma primeira selecção e temos cerca de 70 psicólogos pelo país, e temos estas quatro regiões mais a descoberto. Temos menos psiquiatras, naturalmente, porque também há menos psiquiatras em Portugal. Neste momento temos psiquiatria assegurada na Grande Lisboa, no Grande Porto, nos Açores e na Madeira.

Isso é relativamente ao acompanhamento das vítimas. O Grupo Vita também trabalha o ponto de vista dos agressores.
Sim, é preciso perceber a necessidade de uma intervenção com estas pessoas, que não deixam de abusar só porque são afastadas ou mudadas de paróquia. O comportamento é muitas vezes compulsivo. É muito importante que a própria Igreja comece aqui a assumir, cada vez mais,​ um papel de pressão junto destas pessoas, para que aceitem um processo terapêutico. No meu entender, há aqui um caminho que ainda tem de ser feito. Até ao momento, recebemos apenas uma pessoa que agrediu sexualmente e que aceitou ajuda. Mas lá está: aceitou ajuda porque foi pressionada pelo instituto religioso ao qual pertencia. Para muitas destas pessoas, há a ideia de que se aceita um processo de acompanhamento é como estar a assumir uma culpa.

Tem de haver da parte da Igreja este reconhecimento de que o pedido de ajuda normalmente não é voluntário. Não há esta motivação para pedir ajuda, porque na perspectiva do agressor, e em função de um conjunto de distorções, ele acha que não fez nada de mal. Tentamos que todos os destinatários percebam a dinâmica do funcionamento do agressor para perceber que é importante pressionar, porque se estamos à espera de que eles voluntariamente peçam ajuda, vai ser uma espera um bocadinho inglória. Portanto, não havendo uma pressão muitas vezes externa, uma vez que não há esta motivação interna, não há o reconhecimento da gravidade da situação.

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Temos este foco na Igreja, no sentido de poder pressionar e perceber que, se não o fizer, a probabilidade de reincidência é muito maior. Tem havido algumas críticas desde o início ao Grupo Vita sobre também trabalharmos com os agressores. Primeiro, temos pessoas diferentes a trabalhar com vítimas e com agressores. E depois, estamos focados nas vítimas mas também a trabalhar com os agressores para prevenir a reincidência. Nós não podemos ficar descansados porque houve uma queixa e aquele padre, por exemplo, é afastado. Vai para casa, mas ao pé de casa, tem vizinhos e pode ter sobrinhos e pode ir ao parque infantil e estarem lá outras crianças. Não é uma situação que nos deixe tranquilos. Temos de pensar que aquela pessoa tem de ser intervencionada. Se não protegermos uma determinada comunidade, por exemplo, naquela paróquia, não estamos a proteger outras crianças.

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Falou da eventual situação de um padre ser suspenso da paróquia, mas poder continuar a ter contacto com crianças na comunidade. Não há como evitar essas situações?
Aquela pessoa não vai à paróquia ou não vai à diocese porque está afastada mas, se calhar, não está fechada em casa ou está fechada em casa, mas está na Internet. E na Internet, nós temos o mundo à nossa frente. É um bocadinho ingénuo da nossa parte acharmos que essas medidas chegam. Não chegam. E por isso temos de insistir, não só naturalmente no afastamento das pessoas relativamente a quaisquer funções que impliquem contacto com crianças, jovens ou adultos vulneráveis, mas também pensar numa intervenção terapêutica com estas pessoas. Não deixam de abusar porque estão afastados ou porque foram suspensos. Mudam é o alvo.

Tem conhecimento de situações dessas agora no contexto da Igreja?
Ainda não, mas são 25 anos de prática nesta área e sabemos que muitas vezes são afastados de um contexto e vão usar outro. Hoje em dia com a Internet é tudo muito fácil. São milhares e milhares de crianças à disposição.

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