Não há biombos na sala
Uma viagem pelas batalhas femininas que se travaram ao longo dos anos – e a música que as acompanhou. Quarta de uma série de quatro crónicas de mulheres do mundo da cultura.
Neste momento, tenho o privilégio de ter duas vozes, uma que canta e outra que diz, que escreve. Durante muito tempo, as mulheres só tinham uma voz. Ou meia, ou nenhuma. Ou uma voz baixa para não incomodar. Em definitivo, não podiam ter a voz alta das ideias, da luta. A mulher era percepcionada como uma forma, imaginemos como um círculo, um círculo que, sim, tinha os contornos, mas cujo conteúdo estava baço, tapado. Tapado pelos outros, pela sociedade, pela vergonha. “Não há luta, sem batalha”, dizia Zeca Afonso, na canção Teresa Torga. E muitas batalhas foram já travadas, mas nos 50 anos do 25 de Abril muitas outras ainda exigem existir. Continuamos sempre a lutar para que o brilho da mulher surja cada vez mais no centro. No centro da casa, da rua, da política, da arte e da música.
É, aliás, através da música, em Portugal e no resto do mundo, que diversos compositores retratam os problemas, as lutas, as inquietações que a mulher enfrentava, e ainda enfrenta, diariamente. Proponho uma rápida visão de algumas músicas para se perceber aquilo que mudou — graças às batalhas anteriores — e o que ainda precisa de ser mudado, com novas batalhas.
“Shall women vote?”
“Shall women vote?” (“Deve a mulher votar?”) parece uma pergunta absurda, mas era a pergunta com que muitos países se debatiam no final do séc. XIX. O músico Frank Boylen, em 1881, levantou essa questão para a qual dava resposta, afirmando que sim, que a mulher deveria votar — resposta que, para nós, parece evidente. Porém, na altura não o era. Agora, mulheres e homens votam, mas não podemos esquecer que, para isso, as mulheres tiveram de gritar. Não bastaram opiniões, nem sussurros. A mulher gritou e exigiu. Em 1938, em Portugal, as mulheres ganharam o direito ao voto, ainda que com muitas restrições, mas só muitos anos mais tarde tiveram direito sem qualquer restrição. O evidente demorou várias décadas a tornar-se claro.
(“Deve a mulher votar?”) Tal como esta, muitas outras perguntas estranhas aos ouvidos de hoje circulavam ainda no século XX: “As mulheres podem viajar sem autorização do marido?”; “As mulheres podem divorciar-se?”.
Apesar de muito já ter sido conquistado, ainda existem desigualdades que precisam de ser combatidas: a mulher continua a ser ainda, na maior parte das casas, quem faz as tarefas domésticas e, ainda, quem, fora de casa, ganha menos apesar de, em média, haver mais mulheres com formação superior. Por que razão as mulheres ganham menos? Por que razão fazem mais tarefas domésticas? Quantas perguntas absurdas teremos ainda de fazer para que haja igualdade plena entre homens e mulheres?
“Mulher na democracia não é biombo de sala”
John Berger, no livro Modos de Ver, afirma que a mulher, ao longo da história, tem vindo a ser encarada como um “objecto ao serviço do olhar masculino” e apreciada apenas como um corpo sem interior, como se fosse só pele e boas maneiras. O modo como a sociedade via a mulher estava intrinsecamente ligado aos sentidos e não à razão — a mulher tinha o dever de agradar, de ser afável, de cuidar, de ser vista sóbria e discreta. Em Portugal, o salazarismo veio ainda tentar fixar esta ideia de mulher agradável, mulher que não fala, mulher doce ao serviço do homem — de mulher como acessório.
No âmbito desta luta surgiram diversas canções que combateram a objectificação da mulher. Lesley Gore, por exemplo, cantava, em 1963, You Don't Own Me (“Tu não és meu dono”), apelando para que “[o seu marido] não a exibisse quando os dois andassem em público”, cantando que a mulher não era apêndice. A interpretação de Lesley Gore é de uma força brutal. Nota-se a emoção e ao mesmo tempo a raiva com que a música é interpretada. Esta canção tornou-se um hino feminino, uma luta armada, mas pela voz e pelas palavras.
Nina Simone, uma feminista vibrante durante toda a sua vida, escreveu várias músicas contra o racismo e o machismo. Na canção Four Women (Quatro mulheres), censura a objectificação do corpo da mulher, ironizando com a sua voz poderosa e sarcástica: “My name is Sweet Thing” (“O meu nome é coisinha doce”). Quem a ouve não fica indiferente. Zeca Afonso, na sequência de ter lido uma notícia sobre Teresa Torga, mulher resistente, cantou em 1975 que “mulher na democracia não é biombo de sala”. Ainda é preciso gritar que não há biombos na sala! E que não há biombos nas ruas. Nem há biombos na política, nem na arte. Para que as mulheres, tanto em casa como pelas ruas da cidade, se sintam pessoas com corpos e não corpos com pessoas.
“Cê vai se arrepender de levantar a mão p’ra mim”
Na sequência da visão que prevaleceu durante muito tempo da mulher como ser inferior, ser que deveria ser obediente e inerte e que, por outro lado, encarava o homem como sendo “chefe de família” e “dono dos ovos” (Sérgio Godinho); a mulher na esfera privada e pública foi e continua a ser recorrentemente vítima de violência física e sexual.
No último trimestre de 2023, segundo o Portal de Violência Doméstica, em Portugal “foram acolhidas na Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica 1296 pessoas, sendo 50,8% mulheres, 47,5% crianças e 1,7% homens”. Na esfera pública, em 2023 foram vítimas de violência sexual 637 maiores de idade, dos quais 558 eram mulheres e 79 homens. Na rua e em casa, os enormes números de violência demonstram uma grande disparidade entre as vítimas femininas e masculinas.
Na luta da mulher pelo maior respeito em casa, tanto psicológico como físico, surgiram várias canções marcantes. Uma das histórias mais curiosas ocorreu em 1967, quando Aretha Franklin reinterpretou uma canção originalmente escrita e cantada por um homem, alterou partes da letra e inverteu o seu significado. Originalmente, a canção falava de um homem que exigia os cuidados da mulher quando ele chegasse a casa; Aretha Franklin, ao cantá-la, transformou-a num hino feminista dizendo “All I'm askin' is for a little respect when you get home”, pedindo ao seu marido, então, para que a respeitasse quando ele chegasse a casa, coisa que muitas vezes, em muitas casas, não acontecia. Sérgio Godinho, em 1978, unido à luta das mulheres, cantava uma letra sarcástica sobre a miserável superioridade masculina que levava à violência física: “Ou se porta direitinha/Ou apanha com a asa”.
Muitos anos depois, continuam a surgir canções contra a violência doméstica e contra as violações, temas que, infelizmente, ainda não estão desactualizados. Elza Soares, em 2015, cantava, com a sua voz forte e impactante, contra a violência doméstica: “Cê vai se arrepender de levantar a mão p’ra mim”. E em 2019, no Chile, no dia da Eliminação da Violência contra as Mulheres, surgiu um cântico arrepiante que dizia: “E a culpa não era minha, nem de onde estava, nem do que vestia.”
“Quem faz um filho, fá-lo por gosto”
Mas a mulher não foi reprimida apenas pela via da violência, também o foi pela repressão do seu prazer. Durante muito tempo, a mulher era vista como um ser cujo objectivo era reproduzir, criar os filhos e cuidar da casa. Como um ser que teria de ter relações sexuais apenas com o objectivo de procriar e apenas com o homem com quem estaria casada para sempre (desde que ele quisesse, claro). A partir dos anos 60, começou a revolução sexual e as coisas foram lentamente mudando. O aparecimento dos métodos contraceptivos, retratado, por exemplo, na música de Loretta Lynn, de 1972, Cause Now I've got the pill (“Porque agora eu tenho a pílula”) veio proclamar o poder de a mulher se emancipar sexualmente. Pelo mundo fora, diversas canções tentavam espelhar esta luta que acontecia na sociedade. Na canção do mesmo ano, Simone de Oliveira, foi alvo de críticas quando cantou o poema de Ary dos Santos, onde dizia “Quem faz um filho, fá-lo por gosto”, revelando o desejo sexual da mulher, que era quase um tabu na altura. Uns anos depois, em 1980, já depois da revolução de 1974, e no âmbito da pop, as Doce cantavam bem alto, e já com uma maior aceitação, uma série de canções que celebravam o prazer e desejo femininos como OK, KO e Amanhã de Manhã onde cantavam frases como “Ok põe-me KO/Se souberes como se faz” e “Fica dentro de mim”.
Neste contexto de emancipação sexual da mulher, a ideia da aceitação ética do aborto (que foi legalizado em 1973 nos EUA, onde hoje volta a ser um tema de polarização, mostrando como nenhuma luta está terminada e como muitas batalhas são ainda necessárias) começou a ser um tema relevante nas sociedades ocidentais. Na altura, em Portugal, o aborto clandestino levava à morte de muitas mulheres. Em 1998, após a realização do primeiro referendo, que deixou tudo igual, Paula Rego, com o objectivo de chamar à atenção para a necessidade de legalização, pintou uma série de quadros arrepiantes sobre o aborto clandestino. Em 2004, José Mário Branco no seu tema Poder cantava: “Mulher morta, Não aborta”. Finalmente, depois de algumas canções e muita luta, em 2007, o aborto foi despenalizado. Mas a batalha não está terminada. Nenhuma está.
“Não me ouves se digo que quero existir”
Estou na música, em palco, sozinha, a cantar as minhas composições e letras, em 2024. E estou assim porque muitas lutas foram travadas anteriormente por muitas mulheres. O caminho até aqui foi longo e difícil.
Na tese académica de Irina Isabel Martins, As mulheres e a música em Portugal, a autora explica que em Portugal até ao final do século XIX a mulher apenas tocava música na esfera privada e estava restringida aos “instrumentos femininos”: voz, piano, harpa. Instrumentos como contrabaixo, violoncelo e trompete eram considerados “masculinos”. O violoncelo, nomeadamente, era um instrumento proibido devido ao facto de a mulher ter de "abrir as pernas para o tocar". Porém, a partir do final do século XIX, as mulheres começaram lentamente a tocar os instrumentos proibidos, surgindo neste contexto Guilhermina Suggia, a primeira mulher violoncelista solista portuguesa.
Apesar deste exemplo raro, a maior parte das mulheres que se libertavam da esfera musical privada, tornava-se cantora. O meio das bandas sinfónicas, das orquestras e até da composição estava dominado, quase por completo, por homens. Antes do 25 de Abril, eram muito poucas as mulheres que compunham e, muitas vezes, as que compunham não assinavam ou não mostravam o seu trabalho, por medo do regime socialmente opressor ou por medo da desvalorização da sua arte pelo simples facto de serem mulheres. Até Amália Rodrigues foi vítima desta violência social que muitas vezes levava a uma autocensura: em 1959, a artista escreveu o poema da tão conhecida e extraordinária canção Estranha forma de vida, mas pediu ao seu cunhado que a registasse na SPA como sendo ele o letrista. José Mário Branco, em 1972, cantava, colocando-se na pele de uma mulher, “não me ouves se digo que quero existir” — mostrando esta dificuldade de a mulher se afirmar para além da esfera privada.
Mas a batalha da afirmação da mulher, também na música e nas artes, está longe de terminar. Em 2019, a SPA lembrava que a desproporção entre homens e mulheres, autores/autoras, registados na SPA continuava a ser grande: de cinco para um. E, ainda hoje, em Portugal, em 2024, há muitas mulheres que continuam a ser quase pioneiras a tocar certos instrumentos, como Marta Pereira da Costa, que é uma das poucas mulheres que tocam guitarra portuguesa profissionalmente. Como se a guitarra fosse portuguesa, mas portuguesa masculina.
Ao longo dos anos, diversas canções reflectiram as batalhas femininas: as batalhas da casa, da rua, da intervenção política e da afirmação artística. Ainda hoje, há certamente muitas lutas por travar, mas graças a todas as que já se travaram, eu hoje posso tocar sozinha em palco e escrever as minhas próprias canções e dizer “sai da frente vou passar”. Fico feliz e grata a tantas e tantos que lutaram; feliz e grata por conseguir ter duas vozes que foram tão difíceis de conquistar: a voz que canta e a voz que escreve e assina por baixo.