Marcas portuguesas de pescado ligadas a empresas chinesas com trabalho forçado

Apesar de ser ilegal, há milhares de trabalhadores norte-coreanos em fábricas de pescado na China. Trabalho forçado e abusos sexuais são comuns. Várias marcas portuguesas importam destas fábricas.

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Em Fevereiro de 2023, a Donggang Jinhui Food, uma empresa de processamento de peixe e marisco em Dandong, na China, organizou uma festa. Tinha sido um ano muito positivo: a empresa tinha inaugurado uma nova e grande fábrica no seu complexo na cidade, e duplicara a quantidade de lulas que exportara para os Estados Unidos. Vídeos da comemoração, publicados no Douyin, a versão chinesa do TikTok, mostram cantores, músicos, bailarinos, fogos-de-artifício e luzes estreboscópicas. Um aspecto crucial do sucesso da companhia tem sido a utilização de trabalhadores norte-coreanos, que são enviados para trabalhar em fábricas chinesas, como se fossem prisioneiros, para ganharem dinheiro para o seu governo. Vídeos publicados pela empresa mostram maquinaria com instruções em coreano, e trabalhadores a explicar, em coreano, como limpar e pesar lulas. Na festa, a empresa passou canções pop muito conhecidas em Pyongyang, incluindo Povo, traz glória ao nosso partido (escrita pelo poeta laureado Yun Du-gun​) e Vamos para o Monte Paektu (uma referência ao enormemente mitologizado local de nascimento de Kim Jong-Il). Entre a assistência, dúzias de trabalhadores dançavam ao som da música, empunhando pequenas bandeiras da Coreia do Norte.

Um dos vídeos exibidos na festa mostrava gravações por drone do recinto da empresa, com uma área de 8,5 hectares e totalmente vedado, que possui instalações para processamento e congelação e um dormitório de sete andares para os trabalhadores. Destacava-se ainda o crescente número de clientes no Ocidente e mostrava-se uma série de certificações ocidentais, de empresas como o Marine Stewardship Council (MSC) e a Sedex. Um intermediário na área do marisco que tem negócios com a empresa estima que esta actualmente empregue entre 50 e 70 trabalhadores norte-coreanos. Os artistas que actuaram na festa vestiam as cores da Coreia do Norte e a bandeira do país estava pendurada por trás deles. Quando as imagens foram colocadas online, um utilizador – presumivelmente confundido, dado que é ilegal as empresas chinesas usarem mão-de-obra norte-coreana – perguntou num comentário: "Não é proibido filmar isto?"

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Momento da festa anual da Donggang Jinhui em Fevereiro de 2023, num vídeo publicado nas redes sociais, que mostra a presença da Coreia do Norte na empresa Douyin/The Outlaw Ocean Project

A Donggang Jinhui Food, como muitas outras empresas chinesas, depende de um vasto programa de trabalho forçado da Coreia do Norte. (A Jinhui não respondeu às nossas perguntas.) O programa é gerido por uma agência secreta do governo norte-coreano chamada Room 39, que supervisiona actividades como o envio de assassinos para o estrangeiro, lavagem de dinheiro, programas de mísseis nucleares e balísticos e ciberataques. A Room 39 é o principal departamento governamental responsável pela obtenção de divisas estrangeiras e pelo financiamento do "saco azul" da família Kim, de acordo com um estudo de 2023 da Universidade de Ritsumeikan, em Quioto, e dois relatórios do Departamento do Tesouro dos EUA. A Coreia do Norte começou a enviar trabalhadores para a China em número significativo em 2012 —​ nesse ano, mais de 40 mil receberam vistos especiais. Parte do ordenado dos trabalhadores é retida pelo governo, para financiamento da Room 39 e fornecendo uma fonte crucial de divisas estrangeiras para os funcionários do partido e do Estado. As Nações Unidas estimam que, em 2017, o país terá arrecadado entre 1,2 e 2,3 mil milhões de dólares (entre 1,1 e 2,1 mil milhões de euros) através deste programa.

Nesse ano, após a Coreia do Norte ter efectuado uma série de testes de armas nucleares, a ONU impôs-lhe várias sanções, que tornaram ilegal que empresas estrangeiras utilizassem trabalhadores norte-coreanos, partindo do pressuposto de que esse trabalho era forçado e que os seus salários serviriam para financiar o regime. Nesse ano, os EUA aprovaram uma lei muito restritiva chamada Countering America’s Adversaries Through Sanctions Act, ou CAATSA (Lei de Resposta aos Adversários da América através de Sanções), que impõe pesadas multas a empresas que importem produtos ligados a mão-de-obra norte-coreana.

Esta lei estabelece uma "presunção inilidível" que classifica o trabalho efectuado por norte-coreanos como trabalho forçado, até prova em contrário. Apesar disso, a China continuou a importar trabalhadores norte-coreanos, que fornecem mão-de-obra barata, em grandes quantidades —​ de acordo com o Departamento de Estado dos EUA, existem actualmente mais de 100 mil norte-coreanos a trabalhar no país. Geralmente os trabalhadores são colocados em empresas de construção, fábricas de têxteis e empresas de software. Muitos, pelo que foi possível apurar, também trabalham no processamento de pescado. Em 2022, de acordo com uma estatística do governo chinês inadvertidamente colocada online, havia pelo menos 80 mil trabalhadores norte-coreanos só na cidade de Dandong, que um centro importante da indústria pesqueira.

Nesse ano, dispus-me, juntamente com uma equipa de investigadores, a documentar a utilização de trabalhadores norte-coreanos neste ramo industrial. Analisámos documentos governamentais que foram tornados públicos, material de promoção empresarial, imagens de satélite, fóruns da Internet e notícias de media locais. Vimos centenas de vídeos de telemóvel publicados no Douyin, no Bilibili (um site chinês de partilha de vídeos) e no WeChat (uma plataforma chinesa de mensagens muito popular). Em alguns, a presença de norte-coreanos é discutida abertamente; noutros, pedimos a especialistas para verem as imagens, à procura de sotaques e formas de falar norte-coreanos e outros sinais culturais. Investigar na China é particularmente difícil para jornalistas ocidentais, pelo que enviámos investigadores chineses a visitar fábricas, falar com capatazes e captar imagens de linhas de produção. Também enviei, secretamente e através de intermediários, perguntas a 20 trabalhadores e quatro capatazes norte-coreanos, questionando acerca do tempo que passaram em fábricas chinesas.

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Um grupo de mulheres norte-coreanas nas ruas de Dandong, na China, a serem conduzidas para um restaurante por um capataz Living in North Korea/The Outlaw Ocean Project
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Um grupo de mulheres norte-coreanas em Março de 2023 a serem controladas por um capataz Living in North Korea/The Outlaw Ocean Project

Os trabalhadores, na sua maioria mulheres, descreveram padrões e condições de confinamento e violência nas fábricas; são mantidos em instalações rodeadas de arame farpado, sob o olhar vigilante de seguranças. Várias mulheres descreveram como foram esbofeteadas e esmurradas por parte dos capatazes, por não estarem a trabalhar tanto quanto deviam ou por não seguirem ordens. Quase todas elas sofreram assédio sexual declarado e grave, às mãos dos seus capatazes. Uma trabalhadora, que passou vários anos na fábrica de Jinhui, contou: "O pior momento, o mais triste, foi quando fui forçada a manter relações sexuais quando fomos levadas até um sítio onde se bebia." As trabalhadoras afirmam que foram mantidas nas fábricas contra a sua vontade, e que sofreriam graves castigos se tentassem escapar. "Muitas vezes sublinham que se formos apanhadas a fugir, seremos mortas, e sem deixar qualquer vestígio", escreveu-me uma trabalhadora.

Trabalho implacável

No total, identificámos pelo menos 15 fábricas de processamento de pescado que, desde 2017, empregaram pelo menos mil trabalhadores norte-coreanos. Muito do marisco processado nessas fábricas acabou por ser exportado para os EUA. A nível oficial, a China nega que estes trabalhadores estejam no seu país. Mas a sua presença é um segredo fraco. "São muito fáceis de identificar", explicou um habitante de Dandong num comentário no Bilibili. "Todos vestem uniformes, têm um chefe e seguem ordens."

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Mulheres norte-coreanas numa fábrica de pescado da Donggang Haimeng, em Dandong, China, no final de 2023 — é ilegal contratar trabalhadores da Coreia do Norte The Outlaw Ocean Project

No final de 2023, um investigador da equipa visitou uma fábrica chinesa chamada Donggang Haimeng Foodstuff, e descobriu um capataz norte-coreano sentado numa escrivaninha de madeira com duas pequenas bandeiras, uma da China e outra da Coreia do Norte. Na zona de processamento, várias centenas de mulheres norte-coreanas, vestidas da cabeça aos pés com uniformes vermelhos, batas cor-de-rosa e galochas brancas, sentavam-se lado a lado em longas mesas metálicas sob luzes fortes, dobradas sobre baldes de plásticos com marisco, cortando e separando o pescado à mão.

No final de Novembro, após os investigadores da equipa terem visitado várias fábricas de processamento de marisco onde norte-coreanos trabalhavam em Dandong, as autoridades locais distribuíram panfletos a avisar que os trabalhadores que fossem descobertos a cooperar com meios de comunicação social estrangeiros seriam acusados, segundo a Lei de Anti-espionagem.

Dandong é uma cidade de dois milhões de habitantes junto ao rio Yalu, que percorre a fronteira entre a China e a Coreia do Norte. A Ponte da Amizade Sino-Coreana liga Dandong à cidade norte-coreana de Sinuiju, mesmo do outro lado da fronteira. A ponte é uma das poucas ligações do chamado "reino eremita" ao resto do mundo —​ cerca de 70% de todos os produtos trocados entre os dois países passam por ela.

O governo norte-coreano selecciona cuidadosamente os trabalhadores a enviar para Dandong e outros locais da China. Regra geral, o processo é supervisionado por funcionários da Room 39, que examinam a lealdade política dos candidatos, de forma a reduzir o risco de deserção. (O governo norte-coreano não respondeu às nossas perguntas.) Uma vez escolhidos, os candidatos passam por um treino, que pode durar um ano e inclui aulas organizadas pelo governo e que abordam desde os costumes e etiqueta chineses até "operações inimigas" e as actividades das agências de serviços secretos de outros países.

Para encaminhar trabalhadores para as empresas chinesas, o Departamento de Pescas da Coreia do Norte coordena-se com o Ministério de Recursos Humanos e Segurança Social da China. (Estes departamentos não responderam às nossas perguntas.) A parte prática e logística é muitas vezes entregue a empresas despachantes chinesas privadas, e por vezes as colocações de trabalhadores são negociadas online. Num vídeo publicado no Douyin em Setembro de 2023, por exemplo, um utilizador anunciou a disponibilidade de 2500 norte-coreanos que "desejam encontrar algum trabalho manual". Nos comentários alguém perguntou se eles podiam ser enviados para fábricas de pescado do outro lado da fronteira, em Dandong, e o anunciante anuiu. Outro post mais recente publicitava a disponibilidade de 5000 trabalhadores norte-coreanos, tendo recebido 21 respostas.

Trabalhos na China são muito desejados na Coreia do Norte, dado que muitas vezes vêm acompanhados de contratos que prometem salários de cerca de 270 dólares por mês (cerca de 250 euros) —​ muito mais do que os três dólares por mês (2,77 euros) que se recebe por um trabalho semelhante na Coreia do Norte. Mas os trabalhos também apresentam condições e impostos dissimulados. Os trabalhadores escolhidos assinam contratos com dois ou três anos de duração. Assim que chegam à China, geralmente os capatazes confiscam-lhes os passaportes. Se os trabalhadores tentam fugir ou se queixam a pessoas de fora das fábricas, as suas famílias na Coreia do Norte podem sofrer represálias por parte do governo. No interior das fábricas, os trabalhadores norte-coreanos usam uniformes de cores diferentes dos utilizados por trabalhadores chineses. "Sem isso", disse-nos um capataz que trabalhou na Donggang Jinhui Food durante vários anos, "não conseguimos perceber se algum deles desaparecer."

O trabalho em si é implacável. Os turnos nas fábricas de pescado duram entre 14 e 16 horas. Os trabalhadores têm, no máximo, um dia de folga por mês, e poucos, ou mesmo nenhum, feriados ou dias de baixa médica. As mulheres dormem em beliches em dormitórios fechados à chave, por vezes até 30 pessoas por quarto. Os trabalhadores estão proibidos de sair das instalações da fábrica desacompanhados. O seu correio é escrutinado por seguranças norte-coreanos que também "vigiam a vida diária e enviam para o seu país relatórios oficiais", disse-nos um capataz que passou vários anos numa fábrica em Dalian.

Geralmente, os trabalhadores acabam por receber menos de 10% do salário que lhes fora prometido nos seus contratos. Um contrato a que tivemos acesso estipulava que 40 dólares seriam deduzidos todos os meses para pagar a comida; outra fatia seria deduzida para pagar electricidade, dormida, aquecimento, água, seguros e pagamentos de "lealdade" ao governo. O que sobra é muitas vezes menos de 30 dólares por mês.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros da China não respondeu às questões colocadas relativas a esta investigação. Mas no passado Pequim reagiu às críticas sobre as suas relações com a Coreia do Norte. O embaixador chinês escreveu, no ano passado, uma carta à ONU em que afirmava que a China estava a cumprir as sanções, mesmo tendo sofrido "grandes perdas" em resultado disso, e insistia que tinha feito "investigações exaustivas" depois de alegações de não estarem a cumprir a lei. Um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros afirmou que a China e a Coreia do Norte sempre foram "amigos próximos" e acrescentou: "Os Estados Unidos deviam reflectir sobre os seus erros, assumir as suas responsabilidades, parar de impor sanções e a interferência militar, e adoptar medidas práticas para reiniciar um diálogo construtivo."

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No final de 2023, um dos investigadores da equipa visitou uma fábrica de processamento de marisco no nordeste da China chamada Dandong Taifeng, que exporta dezenas de milhares de toneladas de marisco para mercearias nos EUA e noutros países — foram encontrados 150 norte-coreanos a trabalhar no piso de processamento The Outlaw Ocean Project

Empresas portuguesas

Esta investigação descobriu que um dos principais transformadores de pescado, a Dalian Haiqing Food, utiliza mão-de-obra norte-coreana ilegal. Nela incluem-se trabalhadoras que alegam ter sido vítimas de abuso sexual por parte dos capatazes, juntamente com uma série de outras violações de direitos. Esta fábrica é uma das maiores fornecedoras de muitas redes alimentares europeias, entre elas a Aldi, a segunda maior rede de supermercados da Europa, a Sysco France, um dos maiores fornecedores do Estado francês, e a Espersen, um gigante do sector marisqueiro com sede na Dinamarca e que fornece a McDonald’s em 42 países, a maioria na Europa continental.

A Sysco não respondeu às questões relativamente à Sysco France. A Espersen afirmou que conduziu as suas próprias auditorias internas das fábricas com que a companhia trabalha na China, e que as suas auditorias não detectaram trabalhadores norte-coreanos. A Aldi respondeu que, "em relação à Dalian Haiqing, podemos confirmar que o nosso fornecedor Pickenpack não entregou qualquer produto deste local ao Aldi Nord".

A Dalian Haiqing disse que não contrata trabalhadores norte-coreanos.

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Navios de uma frota chinesa nas águas da Coreia do Sul em Maio de 2019 The Outlaw Ocean Project/Fábio Nascimento

Até os serviços de catering do Parlamento Europeu podem estar relacionados com a Dalian Haiqing: o Compass Group, que fornece esses serviços, abastece-se de peixe na Pittman Seafoods, uma empresa belga que desde 2017 já recebeu, pelo menos, 600 toneladas de pescado da Dalian Haiqing. O Parlamento Europeu afirmou ter "recebido todos os esclarecimentos solicitados" e foi-lhe garantida "a ausência de quaisquer ligações com a empresa mencionada na selecção pela parte contratante". O Compass Group não respondeu às nossas perguntas.

A Donggang Haimeng, outra fábrica de pescado chinesa que utiliza mão-de-obra norte-coreana, abastece a empresa portuguesa Pascoal & Filhos, que abastece retalhistas em todo o país, incluindo o Pingo Doce e o cash and carry Recheio, empresas que não responderam às nossas perguntas.

Pelo menos três outras empresas portuguesas importaram produtos da Donggang Haimeng: a Riberalves, a Companhia Nacional Comércio Bacalhau (C.N.C.B.) e a Soguima. Produtos de bacalhau, quer com a marca Riberalves ou com o código MSC da Riberalves nas embalagens, estão disponíveis em mercearias ou supermercados em Portugal, como é o caso do Continente, do grupo Sonae, proprietário do PÚBLICO incluindo a sua própria marca branca de produtos derivados de bacalhau , Lidl e Auchan. Os produtos de bacalhau da Riberalves estão também disponíveis em retalhistas de outros países, como a Walmart nos EUA, e a Coop e a Migros na Suíça. Tanto a Lidl como a Migros afirmaram que estão a fazer auditorias internas; a Coop afirmou que a Riberalves lhes comunicara que não faz negócios com a Donggang Haimeng; a Brasmar respondeu que decidiu suspender as suas relações com a Donggang Haimeng Foodstuff após ter tomado conhecimento da nossa investigação; a Soguima referiu num comunicado que, na sequência de informações da Aldi, também não comprará mais produtos a esse fornecedor até que a situação seja esclarecida; a C.N.C.B. e o Auchan não responderam às nossas perguntas.

O bacalhau Pescanorte, uma marca detida e distribuída pela C.N.C.B., também está disponível nas mercearias e supermercados em Portugal, como o Continente e a Neomáquina, que também não responderam às nossas perguntas.

Num comunicado, a Donggang Haimeng afirma que não contratou quaisquer trabalhadores norte-coreanos.

A Riberalves também é abastecida com peixe salgado pela Donggang Jinhui, que mencionámos no início do artigo, e anteriormente foi vendido através da Aldi Portugal, bem como noutras mercearias independentes. A Donggang Jinhui e a Riberalves não responderam às nossas perguntas. Num comunicado, a Aldi afirma que está "a realizar um inquérito de dados aos nossos fornecedores, para obter informação mais detalhada" e avaliar se os produtos provinham da Haimeng. E acrescenta: "Relativamente à situação nas instalações de produção da Donggang Jinhui, podemos confirmar que a Aldi Nord continua a excluir estas instalações de produção da sua cadeia de abastecimento. Para além disso, temo-nos mantido em contacto com o nosso fornecedor Riberalves acerca da situação nas referidas instalações de produção e eles também confirmaram que não comprarão quaisquer produtos da Donggang Jinhui até outra indicação." A Aldi não respondeu às questões relativas à altura em que a sua relação de abastecimento com a Jinhui cessou. Acerca da Dalian Haiqing, a Aldi declarou: "O nosso fornecedor Pickenpack não entregou quaisquer produtos deste local à Aldi."

É comum as empresas garantirem que estão a seguir as normas laborais, dado que foram aprovadas em "auditorias sociais", que são conduzidas por empresas que inspeccionam os locais de trabalho à procura de abusos. Mas metade das fábricas que descobrimos que estão a utilizar trabalhadores norte-coreanos foram certificadas pelo Marine Stewardship Council (M.S.C.), um grupo dedicado à sustentabilidade, que apenas concede certificação se as empresas forem aprovadas em auditorias sociais ou em outros parâmetros. Jackie Marks, directora de Relações Públicas do MSC, disse-nos que estas auditorias são conduzidas por uma empresa terceira, não pela própria organização.

O cepticismo face a estas auditorias está a aumentar. Em 2021, o Departamento de Estado dos EUA afirmou que as auditorias, nomeadamente na China, são desadequadas para identificar trabalho forçado, dado que dependem de tradutores governamentais e raramente falam directamente com os trabalhadores. Os auditores também têm relutância em perturbar as empresas que os contrataram e os trabalhadores receiam represálias se relatarem abusos.

Violência e solidão profunda

No fim do ano passado, fiz um esforço para comunicar mais directamente com alguns dos trabalhadores norte-coreanos que se viram envolvidos no programa. Os jornalistas ocidentais estão proibidos de entrar na Coreia do Norte, e os cidadãos do país estão proibidos de falar com jornalistas. Mas contratamos uma equipa de investigadores na Coreia do Sul e na China que auxiliam organizações jornalísticas locais e media ocidentais a publicar artigos acerca das condições na Coreia do Norte. Os investigadores têm contactos na Coreia do Norte, que usam para retirar informação para fora do país – como já aconteceu, por exemplo, com notícias acerca de recentes faltas de alimentos, falhas de energia no país e grafitti antigovernamentais.

Trabalhei com os investigadores e os seus contactos, alguns dos quais na área das agências de emprego, para compilar uma lista de duas dúzias de norte-coreanos que tinham sido enviados para a China, a maioria dos quais já regressou a casa. Os trabalhadores e capatazes tinham idades diversificadas, provinham de diferentes regiões do país e tinham trabalhado em pelo menos meia- dúzia de fábricas chinesas. Fizemos uma lista de perguntas que foram enviadas através dos investigadores para os seus contactos na Coreia do Norte. Estes contactos encontraram-se com os trabalhadores para os entrevistar em segredo. As entrevistas foram feitas individualmente, de maneira a que os trabalhadores não soubessem a identidade dos outros que também iam falar, ou o que eles tinham dito. Os encontros geralmente tiveram lugar em locais abertos, parques ou na rua, onde é mais difícil os agentes de segurança usarem escutas para vigiar.

Dissemos a todos os trabalhadores que as suas respostas iriam ser publicamente partilhadas por um órgão de comunicação social norte-americano, o que significa que enfrentaram riscos consideráveis ao falarem — os especialistas afirmam que provavelmente seriam executados, e as suas famílias seriam internadas em campos de concentração. Mas aceitaram falar porque acreditavam que era importante que o resto do mundo soubesse o que acontece aos trabalhadores que são enviados para a China.

Os contactos norte-coreanos transcreveram manualmente as respostas dos trabalhadores, e depois tiraram fotografias dos questionários e enviaram-nas para os investigadores, usando ferramentas online encriptadas e telemóveis por satélite. Depois, foram-nos enviadas. Os trabalhadores e capatazes na China foram entrevistados da mesma forma. Por causa das várias camadas de protecção, é impossível, obviamente, verificar totalmente os conteúdos das entrevistas. Mas pedimos a especialistas que revissem as respostas, para ter a certeza de que eram consistentes com o que se conhece acerca do programa de trabalho temporário e com entrevistas efectuadas a desertores norte-coreanos. Mais de dois meses após este processo terminar, a nossa equipa verificou a situação dos entrevistados e dos entrevistadores, e todos ainda estavam bem e em segurança.

Nas suas respostas, os trabalhadores referiram um confinamento esmagador e uma profunda solidão. O trabalho era pesadíssimo, e a violência era habitual. "Eles pontapeiam-nos e tratam-nos como se não fôssemos gente", disse uma trabalhadora que passou quatro anos a trabalhar com amêijoas numa fábrica em Dandong. Perguntamos a todas as mulheres se se lembravam de algum momento de felicidade. A maioria disse que não tinha havido nenhum, mas quase todas tinham momentos tristes na memória. Uma, que recentemente regressara à Coreia do Norte, contou que a sua experiência numa fábrica chinesa a fizera "desejar morrer".

Abusos sexuais

O padrão mais impressionante foi a descrição feita pelas mulheres do abuso sexual nas fábricas.

De vinte trabalhadoras que entrevistámos, 17 disseram que tinham sido sexualmente atacadas por capatazes das fábricas. Três das mulheres afirmaram que os capatazes as tinham obrigado a prostituir-se. "Sempre que podem, namoriscam connosco até cedermos, e obrigam-nos a ter sexo em troca de dinheiro, e ainda é pior se formos bonitas", disse-nos uma mulher de Haiqing. A trabalhadora da Jinhui pormenorizou: "Mesmo quando não havia trabalho durante a pandemia, o Estado exigia divisas estrangeiras para os fundos de lealdade, e então os capatazes obrigam as trabalhadoras a vender os seus corpos."

A pandemia tornou a vida ainda mais difícil para muitas das mulheres. Quando a China fechou as suas fronteiras, algumas viram-se encurraladas longe de casa, sem poder regressar. Muitos dos seus locais de trabalho fecharam, e perderam os seus meios de subsistência. Os trabalhadores norte-coreanos geralmente têm que subornar os funcionários governamentais e intermediários das agências de emprego para assegurarem postos de trabalho na China. Muitos pedem dinheiro emprestado a usurários ilegais. Estes empréstimos, geralmente por volta de 1500 dólares (cerca de 1390 euros), podem vir associados a juros de até 10%.

Quando o trabalho parou na China, os trabalhadores norte-coreanos deixaram de poder pagar os seus empréstimos. Por causa disso, os usurários norte-coreanos enviaram grupos de capangas às casas de familiares dos trabalhadores, para os intimidar. Algumas das famílias de trabalhadores tiveram que vender as suas casas para ficarem livres dos pagamentos. Em 2023, duas trabalhadoras norte-coreanas em fábricas de têxteis suicidaram-se.

As restrições na China devidas à pandemia diminuíram no ano passado, e a fronteira entre a China e a Coreia do Norte reabriu. Em Agosto, cerca de 300 trabalhadores norte-coreanos embarcaram em dez autocarros em Dandong, para voltarem para casa. Em fotografias e um vídeo que vimos, algumas das mulheres estão a arrumar apressadamente grandes malas num autocarro verde, que depois atravessa a Ponte da Amizade. Centenas de outros trabalhadores norte-coreanos regressaram de comboio e avião nos meses que se seguiram.

No final de 2023, os governos da China e da Coreia do Norte iniciaram negociações acerca da próxima leva de trabalhadores a serem enviados para fábricas chinesas. De acordo com um relatório de Hyemin Son, uma norte-coreana que desertou e agora trabalha para a Radio Free Asia, os intermediários norte-coreanos de mão-de-obra exigiram que as empresas chinesas paguem um adiantamento de cerca de 130 dólares (120 euros) por trabalhador; o preço subiu, explicou-lhe um dos intermediários, porque "as empresas chinesas não conseguem operar sem mão-de-obra norte-coreana".


Este artigo foi realizado em colaboração com o Outlaw Ocean Project, com contribuições de Joe Galvin, Maya Martin, Susan Ryan, Jake Conley, Austin Brush e Daniel Murphy


Esta reportagem foi produzida pelo The Outlaw Ocean Project, uma organização jornalística sem fins lucrativos com sede em Washington, que tem feito trabalhos relacionados com direitos humanos, questões laborais e problemas ambientais nos oceanos. Este colectivo de jornalistas foi fundado pelo antigo repórter do New York Times Ian Urbina.

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Tradução: Eurico Monchique