Entre natureza e economia, o que se ganha e o que se perde: 43 casos
A tensão entre desenvolver e proteger a natureza cria decisões complexas. Perdemos sempre alguma coisa. Como chegar ao equilíbrio? Conflitos ambientais, de Bragança a Albufeira.
É no alpendre da sua casa na aldeia de Lagomar, com vista para um “quintal experimental” e uma linha contínua de carvalhos e azinheiras, que Carlos Aguiar faz a síntese do problema: “Para poupar dez minutos, vou gastar dez milhões?!”
É uma força de expressão. Não são dez milhões, mas 30; não vai ser ele a gastar, mas o Estado, com ajuda do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e não são dez minutos, mas 20.
Engenheiro agrónomo e professor de Botânica no Instituto Politécnico de Bragança, Aguiar fala da velha estrada nacional para Espanha.
De Bragança à aldeia espanhola Puebla de Sanábria são 60 minutos, mas, com a “bazuca” europeia, em 2026 a estrada vai ser melhorada e a viagem durará metade do tempo.
“Esta proximidade vai beneficiar a população de todo o Nordeste Transmontano”, argumenta o Ministério da Coesão Territorial, vai ajudar ao “desenvolvimento económico”, pois “cria um corredor alternativo para colocar mercadorias nos grandes centros de consumo europeus”, e vai “contribuir para o desenvolvimento turístico da região e do país”.
As vantagens da obra são evidentes: é a região mais a norte de Portugal, na raia, interior, remota e isolada. Aqui, “isolado” traduz-se por factos improváveis como Bragança — a dez minutos do alpendre de Aguiar — não ter comboio desde 1991.
Problema: a estrada atravessa o Parque Natural de Montesinho, casa do lobo-ibérico — haverá oito alcateias —, de veados, corças e javalis, 75 mil hectares de área protegida desde 1979 e uma floresta com oito mil anos.
A requalificação da estrada actual — 24km até à fronteira — e a construção de dois desvios para contornar as aldeias de Varge e Rio de Onor vão “aumentar a coesão, a eficiência e a sustentabilidade” da Europa e “melhorar a intermodalidade e a conectividade”, argumenta a Câmara Municipal de Bragança, do PSD.
Hoje, quem vai de Bragança para Madrid pode guiar uma hora até Zamora e apanhar o comboio de alta velocidade, 40 euros ida e volta, duas horas de porta a porta. Isto para sul e para passageiros.
Outra forma de ir para Espanha — e daí França, etc. — é pelo Norte, pelas estradas nacionais que atravessam o Parque Natural de Montesinho: uma hora até Sanábria de carro e, daí, comboio para Madrid, abaixo, ou Bilbau, acima.
Há 26 anos que a câmara reivindica uma ligação mais rápida a Puebla de Sanábria, para “criar valor para as empresas e para a economia, prosseguindo uma política ambiental”. Com a nova estação de comboios de alta velocidade em Puebla de Sanábria, inaugurada em 2021, a ideia ganhou força redobrada.
AVE e Alvia são diferentes
Há um senão: os “comboios-bala” de Puebla de Sanábria não são AVE (Alta Velocidad Española), que circulam a 310km/hora e quase não param. São Alvia, que andam, no máximo, a 250km/hora e fazem mais paragens. Para Madrid, param sempre em Zamora. “O Alvia é uma espécie de Intercidades, e o AVE um Alfa. Em Puebla de Sanábria apanha-se o Alvia, não o AVE. Omitir isso é tentar enganar as pessoas”, diz Ana Pedrosa, que há 13 anos se mudou de Espinho para Montesinho, com os filhos e o marido, António Sá. Os dois trabalharam juntos durante anos para revistas de viagens, ela a escrever, ele a fotografar, e agora têm um alojamento turístico, o Bétula Studios, numa das 90 aldeias do parque.
Em 2021, pouco depois de o PRR preliminar ter sido entregue à Comissão Europeia, Sá foi um dos 1100 cidadãos que participaram na consulta pública.
A sua carta foi um protesto: “As áreas protegidas protegem o quê? O que pretendeu o Estado ao criar estas figuras de ordenamento do território? Qual a lógica de privilegiar a construção de infra-estruturas num pacote financeiro com assumidas prioridades ambientais? Qual a lógica de avançar com estruturas rodoviárias quando estas colidem directamente com os objectivos que presidiram à classificação dos territórios que pretendem agora atravessar?”
Sá, que é activista ambiental desde os 18 anos, diz na carta que “é impossível defender o ambiente e conservar a natureza sem abdicarmos um pouco do nosso conforto”, e que as estradas que ligam Bragança a Espanha “podem não ser as mais rápidas, mas são compatíveis com a área protegida que atravessam”.
Basta percorrer a estrada até à fronteira para encontrar, nas saídas de terra batida, pegadas de animais e marcas de pneus, lado a lado: animais e humanos vivem próximos e em aparente harmonia. “Está a ver esta pegada de lobo?”, pergunta Sá. “E ali está outra, de veado. Aqui passam lobos, passam veados. Queremos que passem camiões?” Além disso, diz, “se for a 70km/hora, tenho tempo de os ver e abrandar”.
Também basta entrar na auto-estrada que sai de Bragança para ver um texugo morto na berma. Conseguiu entrar, mas não conseguiu sair.
Quando escreveu a carta, em Março de 2021, ainda estava de pé a possibilidade de ser feita uma via rápida — Itinerário Principal (IP) ou mesmo auto-estrada. Duas semanas depois, Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero – Associação Sistema Terrestre Sustentável, escreveu à Comissão Europeia a pedir que a construção da estrada não fosse subsidiada pelo Mecanismo de Recuperação e Resiliência, como proposto pelo Governo português três meses antes.
Ferreira disse que o projecto não estava “suficientemente justificado em matéria de acção climática” e que havia uma “manifesta incompatibilidade” com os objectivos climáticos da União Europeia (UE), contrariando os pilares da transição ecológica e da coesão territorial.
De todas as obras previstas para a região, o projecto Bragança-Puebla de Sanábria é o “mais delicado”, pois propõe o “atravessamento numa área especialmente sensível para a fauna e num território crítico para o lobo-ibérico”. “A concretizar-se a ligação, sobretudo em moldes de via rápida, será totalmente incompatível com a conservação do lobo e das espécies de que ele depende para sobreviver”, escreveu o líder da Zero.
As estradas para circular a maior velocidade são fatais para a fauna silvestre: ou porque os animais são atropelados ou porque são barreiras intransponíveis, impedindo que se movimentem livremente no parque natural.
Na altura, a Câmara de Bragança continuava a lutar por uma estrada com perfil de IP, onde se circula até aos 100km/hora.
Depois de mil voltas, a estrada vai avançar em breve, mas não como a câmara queria. Vai ser uma “estrada melhorada”.
“Se é ‘estrada melhorada’, é óptimo”, diz Francisco Petrucci Fonseca, presidente do Grupo Lobo e professor jubilado de Biologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. “Qualquer estrada perturba o lobo se não obedecer a critérios: quando tem vedações, tem de ter passagens para o lobo poder ultrapassar o obstáculo — a estrada é um obstáculo. Podem ser ‘pontes verdes’ ou passagens por baixo das estradas. Fazer duas ou três em quilómetros e quilómetros de estrada não funciona. Por isso, é preciso dinheiro, as obras ficam muito mais caras.”
À espera de Espanha
O anúncio, recente, foi um alívio para os ambientalistas. Mas Sá continua preocupado com o aumento da perturbação da fauna e da probabilidade de atropelamento de animais, com o aumento da poluição atmosférica e sonora, com a viabilização do trânsito de veículos pesados, com a destruição de habitats e com o impacto paisagístico. E pergunta: “É isto que queremos para as nossas áreas protegidas? Onde está a estratégia nacional de conservação da natureza? Onde está o ordenamento do território? Não aprendemos nada com o passado no que toca a compromissos transfronteiriços adiados, suspensos ou até atraiçoados?”
Está a falar do Governo espanhol. O sucesso das ligações transfronteiriças depende dos dois lados da fronteira. “Espanha quer trazer mais espanhóis para Bragança? Por isso, a minha pergunta é: e se gastamos 30 milhões para acabarmos encalhados na mesma velha estrada espanhola entre a fronteira e Puebla de Sanábria?”, pergunta Pedrosa.
É fácil perceber de onde vem a dúvida. “Portugal fez a auto-estrada de Bragança a Quintanilha — que liga a Zamora — com o compromisso de que Espanha ia fazer o mesmo do lado de lá”, diz Pedrosa. “E não fez. Há 15 anos que estamos à espera.”
Bragança é uma capital de distrito com 35 mil pessoas. Zamora é uma capital de província com 60 mil pessoas. Puebla de Sanábria é uma aldeia com mil pessoas. “Se em 15 anos Espanha não fez o que se comprometeu em relação a Zamora, porque é que vai fazer com Puebla de Sanábria? Se não uniu um ponto de fronteira que liga a uma capital de distrito, porque é que vai fazer ligação a uma aldeia? Que interesse há em Espanha para investir? Que garantias há de Espanha?”
Espanha assumiu o compromisso de melhorar a estrada do seu lado ao mais alto nível, na primeira Estratégia Comum de Desenvolvimento Transfronteiriço (ECDT), assinada na 31.ª Cimeira Luso-Espanhola, na Guarda, em 2020. Aí, ainda se fala em “completar a ligação do IP2 entre Bragança e Puebla de Sanábria”. O plano foi reafirmado na declaração da 34.ª cimeira, em Lanzarote, em 2023, onde se lê que “os dois países continuarão a promover os territórios transfronteiriços, através da melhoria da acessibilidade viária transfronteiriça”, e lá está de novo Bragança-Puebla de Sanábria — já agora, também Zamora-Quintanilha. O objectivo, lê-se, é fixar e atrair pessoas.
Ursos bem-vindos
“Fala-se da interioridade e do problema de sermos poucos”, diz Aguiar, o professor de Botânica. “Ser remoto e pouco denso é um factor de atracção turística. As pessoas vêm aqui à procura de uma natureza menos humanizada, de uma paisagem pristina. O Montesinho tem uma aura de mistério. É ler Rentes de Carvalho e Terra Fria de Ferreira de Castro.” Mistério é uma palavra frequente por aqui. Luís Correia, gestor e dono da Apimonte, que produz mel de castanheiro, e de um alojamento para turistas na aldeia de Vilarinho, também a usa: “Sermos poucos é o pólo de interesse do Montesinho. A natureza é o mistério do nosso território. Não podemos abrir mão da natureza. A natureza vale muito dinheiro, mesmo que não se consiga traduzir em recursos financeiros.”
Em 2019, o empresário foi notícia depois de um urso-pardo, espécie extinta em Portugal desde 1843, ter comido 50 quilos de mel das suas colmeias. O visitante furtivo terá vindo da cordilheira Cantábrica, 500 quilómetros para norte, onde vivem 370 ursos-pardos.
Numa ronda aos seus apiários, no Montesinho, Correia viu uma rede tombada e uma colmeia de 40 quilos vazia. Duas noites depois, novo ataque, noutro apiário. Chamou o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que, feitas as análises aos pêlos e pegadas, confirmou ser um urso-pardo. O empresário ficou tão contente que ganhou novos amigos. “Li no jornal local que o dono das colmeias dizia que o urso era bem-vindo, que não estava nada chateado, porque ‘gostamos de dar coisas aos nossos amigos’ e que, quando o ICNF pôs uma vedação, deixou duas colmeias de fora, para o caso de o urso voltar. Eu quero conhecer este homem!”, conta Sá.
“O mundo precisa de andar um pouco para trás”, diz Correia, rodeado por frascos de mel e produtos da região. “A próxima revolução vai ser fazer marcha-atrás. Qualquer burro sabe fazer marcha à frente. Somos tão evoluídos que pomos as cascas de maçã e de cenoura num saco de plástico, a seguir num contentor de plástico na rua, que no dia seguinte é recolhido por um camião da Câmara de Bragança, que faz 16 quilómetros para cá e 16 quilómetros para lá, mais umas voltinhas, são 50 quilómetros por dia, ou seja, 17 euros em gasóleo. No dia seguinte, vai outro camião buscar as cascas para as levar para um aterro. Quando essas cascas podiam ser usadas para alimentar os animais aqui da aldeia. É esta a nossa evolução. Estamos a caminhar para a burridade”, insiste, contente por inventar uma palavra. “Só sabemos andar numa direcção: ganhar mais dinheiro. Vamos ter de aprender a fazer marcha-atrás e ir em direcção à qualidade.”
Correia diz que melhorar a estrada “pode trazer mais visitantes e ajudar a escoar produtos". "Mas escoar o quê? Aqui é castanheiro, castanheiro, castanheiro. É a maior produção do Parque Natural de Montesinho.”
E há dois problemas: “Os espanhóis também têm muito castanheiro e, nos últimos 15 anos, a doença da tinta e o cancro do castanheiro estão a matar árvores muito jovens, com 20 e 30 anos, quando o castanheiro pode viver mil anos. Se deixarmos de ter castanheiro, vamos ter o quê? Temos de encolher os circuitos de abastecimento e desenvolver as economias regionais. Faz sentido um quilo de trigo que vem da Ucrânia ser mais barato do que um quilo de trigo produzido aqui em Trás-os-Montes? Não temos capacidade para ser grandes, mas temos capacidade para ser bons. Nunca seremos uma zona de grande desenvolvimento, porque o território é muito retalhado e temos muito calor e muito frio. Temos de apostar em micronegócios.”
Ou em obras públicas. Aguiar, o botânico, defende que “as pessoas têm direito a circular” e sublinha que Bragança não tem comboio e do outro lado do parque não só há comboio, muito mais sustentável do que o carro, como comboio de alta velocidade. Mas não justifica gastar o orçamento previsto. “Trinta milhões de euros?! É uma despesa desproporcionada para o uso que vai ter. De Bragança a Madrid, de carro, são 350 quilómetros, faz-se em 3,5 horas. Não há coisas melhores para fazer com esse dinheiro? Nenhuma aldeia do Parque de Montesinho tem fibra óptica, ainda há aldeias sem saneamento básico. Há muito onde investir.”
Mapa dos conflitos ambientais
No conflito capitalismo versus natureza, é difícil pesar o que se ganha e o que se perde. São processos de decisão complexos, cujo desafio é encontrar o equilíbrio.
Com o país em campanha para as eleições antecipadas de 10 de Março, o PÚBLICO procurou os casos mais emblemáticos deste difícil equilíbrio entre natureza e economia. Encontrámos 43.
Há problemas transversais e comuns a muitos dos 18 distritos: erosão costeira; expansão desregrada de plantação de eucaliptos; espécies exóticas invasoras; agricultura intensiva e de regadio que transforma a paisagem, destrói habitats e ameaça espécies; intensificação das plataformas de energia renovável; centrais fotovoltaicas cuja construção pode destruir ecossistemas; estufas em grande dimensão; 30 pedidos de prospecção de lítio; eólicas offshore; actividades económicas em áreas protegidas; enorme ocupação turística; dragagens e aterros; expansão desmesurada de aldeamentos turísticos e campos de golfe em zonas costeiras de alto valor ecológico e social; depósitos ilegais de toneladas de resíduos perigosos em aterros destinados a inertes; esteiros contaminados com poluição vinda das unidades de indústria química, com mercúrio, arsénio e chumbo.
Há conflitos novos, como o do Projecto Tejo, que abrange 43 municípios do Ribatejo, Oeste e a península de Setúbal. O projecto agrícola partiu de privados, os proprietários da Quinta da Lagoalva, e previa a construção de um sistema de barragens e canais para rega e abastecimento a ser pago pelo PRR. Seria um investimento de 4,5 mil milhões de euros. Promete regar 300 mil hectares de terras agrícolas recorrendo à água do rio Tejo, com açudes e novas barragens, e tornar o Tejo navegável de Vila Franca de Xira a Abrantes, para desenvolver o turismo e a piscicultura. Foi apresentado em 2020 e estaria pronto em 30 a 40 anos. Os promotores dizem que “o Tejo está morto”, que “é um esgoto” e querem “pôr um pacemaker” — os seis açudes, numa escada de água.
Os ambientalistas do Movimento pelo Tejo – proTEJO dizem que “a solução mais simples” é implementar caudais ecológicos regulares vindos de Espanha “e não inventar justificações para os custos adicionais astronómicos para os contribuintes portugueses”.
Defendem que a distribuição do caudal anual mínimo da Convenção de Albufeira asseguraria um caudal de 45 metros cúbicos por segundo (m3/s) no Verão, mais do que o dobro do máximo de 20m3/s da Barragem do Alvito, proposta pelo Governo. Defendem ainda a criação e restauração de corredores ecológicos de floresta autóctone, vegetação ripícola e biodiversidade ao longo dos rios e ribeiros. E defendem um investimento “de apenas dez milhões de euros na construção de uma estação de captação de água directamente do rio Tejo na zona da Lezíria do Tejo para uso agrícola e promoção de agricultura sustentável”.
Em 2022, numa conferência a convite da Caixa Geral de Depósitos em Tomar, o advogado José Miguel Júdice defendeu o projecto com dez argumentos, entre os quais triplicar o regadio sem usar águas subterrâneas; aumentar mais de 500% o rendimento agrícola onde há 30 mil agricultores; criar um destino turístico; tornar o Tejo navegável até Espanha, e criar 40 mil novos empregos. O advogado não percebe como é que o tema não está na ordem do dia, quando há uma seca gravíssima e é preciso adaptar o país às alterações climáticas.
Dessalinizar, sim ou não?
Outro conflito novo é a Central de Dessalinização de Albufeira. Em Junho de 2023, o Governo propôs a construção de uma dessalinizadora no concelho de Albufeira. Pode produzir um terço das necessidades urbanas de água no Algarve, mas, segundo a Zero, essa é a mesma quantidade de água que hoje se perde no sistema. O presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve (AMAL) ficou contente e disse: “é o passo que esperávamos”, “um seguro com boa taxa de cobertura”.
Contra está a Plataforma Água Sustentável (PAS), que agrega 14 associações ambientalistas.
Num comunicado de Janeiro, a PAS argumentou que: 1) a dessalinizadora “não assegura o acesso universal e equitativo à água potável”, pois será entregue a uma empresa público-privada; 2) “a eficácia é reduzida”, pois a dessalinização destina-se ao consumo doméstico (cem mil consumidores), quando a agricultura é o grande consumidor de água no Algarve; 3) terá impactos ambientais negativos, porque as centrais de dessalinização exigem elevado consumo de combustíveis e criam deposição e dispersão no mar dos efluentes salinos e águas sujas; 4) haverá diminuição da qualidade da água marinha, “impactando a vida marinha e as praias algarvias e assim, indirectamente, as pescas e o turismo”; 5) e é incoerente com directrizes e planos nacionais que “visam melhorar a obtenção e gestão da água” e “contraditória” com as directrizes da UE, pois “não promove a protecção das zonas costeiras e do mar do Algarve e não respeita o princípio de não prejudicar significativamente os objectivos ambientais de protecção dos recursos marinhos, da biodiversidade e dos ecossistemas” do PRR.
Pisão: é desta?
Outros conflitos são antigos. Desde 1957 que o Estado português defende a construção da Barragem do Pisão, às portas do Crato e a 20 minutos de Portalegre. De tudo o que se ganha e o que se perde, o senão mais evidente é a aldeia do Pisão: vai ficar debaixo de água.
Adelaide Felizardo, dona do Café Central do Pisão, acredita que “a barragem vem agora”: “As voltas que isto já deu! Vinham eleições e eles diziam: ‘Vamos fazer a barragem’, mas depois deixava de se ouvir e não acontecia nada.”
“Lembro-me de Mário Soares ir lá dizer ‘a barragem vai avançar’, de António Guterres ir lá dizer ‘a barragem vai avançar’, de Durão Barroso ir lá dizer ‘a barragem vai avançar’. António Costa já foi lá três vezes, a última em Janeiro, agora para dizer que ia aumentar o investimento para mais 30 milhões”, diz António Farinha, presidente da Associação Moradores da Aldeia do Pisão, que foi consultor de avaliação de empresas e director do Montepio.
“Agora é diferente”, diz Felizardo. “Há editais sobre o realojamento da população, foi feito um inquérito à população e vão fazer outro, já tivemos várias reuniões com os promotores e a câmara. Agora não tem que ver com eleições, isto já vinha de trás.”
O Pisão tem 70 pessoas e 150 casas. “Muitas são segundas casas, usadas nas férias”, diz Farinha. “Sempre se falou em fazer uma nova aldeia e as pessoas nunca foram contra a barragem. Nos anos 1960, o meu pai mostrou-me o sítio onde ia fazer-se a nova aldeia, que não é muito longe do sítio onde está planeado fazer-se agora. Nunca houve controvérsia com a população. Não me lembro de alguém dizer ‘sou contra’, ‘não quero’. O importante é defender as pessoas no processo de realojamento.”
Os moradores vão poder escolher se querem uma casa na nova aldeia ou uma casa no Crato. Lucília Rosa, 79 anos, já escolheu: “Quero ir para o Crato, farta de campo estou eu!” Quando era nova, trabalhou muitos anos no campo a apanhar azeitona, bolota, “o que aparecia”, e depois no centro de saúde da aldeia, onde “dava senhas, dava injecções, fazia de tudo”. Dizem-lhe que “é agora”, mas está descrente e, neste Verão, vai pintar as paredes do quintal como faz todos os anos: “Desde pequenina que oiço falar da barragem. Mesmo que seja feita, entre fazer e não fazer, já cá não estou.” Nunca pensou no que vai levar. “Só levo o que é bom, não vou para lá com ferro velho!”, diz a rir, enquanto mostra a casa onde mora há 50 anos.
Água, petróleo do futuro
Nunca houve controvérsia com a população — haverá um casal contra —, mas há com os ambientalistas.
Promovida pela Comunidade Intermunicipal do Alto Alentejo (CIMAA), que reúne 15 municípios, e apoiada com 140 milhões de euros do PRR e dez do Orçamento do Estado, a futura barragem deverá garantir água para consumo urbano de 110 mil pessoas e tornar o território auto-suficiente em termos de produção eléctrica, abastecimento público de água e produção agro-alimentar.
“Mas a barragem não é só água”, diz Joaquim Diogo, presidente da Câmara do Crato, do PS, que nos recebe nas piscinas municipais, com um rebanho de ovelhas a pastar ao fundo. “Economia não é chaminés a deitarem fumo. Não podemos reduzir-nos à conformidade. É importante começar a fazer auto-estradas de água.”
“Não somos contra a construção de barragens”, diz Pedro Horta, da Zero. “Mas uma barragem desta dimensão tem de ter justificação de interesse público que, no mínimo, mostre que não é viável outra solução”, e a Zero não viu isso. “Dizem que o principal objectivo é o abastecimento público, mas não vemos que haja esse problema na região”, acrescenta. “E as previsões indicam que até vai ser menor por causa da dinâmica de saída da população. Dizer que o Pisão é importante para abastecimento público é um grande chavão. Uma declaração das Águas do Vale do Tejo, empresa pública, prevê a redução de procura de água de 20% nos próximos 30 anos.”
O presidente da câmara contesta: a Barragem da Póvoa e Meadas, a 20 quilómetros do Crato, abastece oito dos 15 municípios do distrito (Nisa, Gavião, Crato, Alter do Chão, Ponte de Sor, Avis, Sousel e Fronteira) — 60 mil pessoas —, “mas tem um problema estrutural identificado há anos: tem grandes fracturas no paredão, que impedem que chegue a 100% da sua capacidade, e, para ser reparada, tem de ser fechada”.
Diogo conta também que “há seis anos a Barragem da Póvoa desceu tanto que a qualidade da água baixou muito, porque as condutas são longas, chegam a ter 80 quilómetros”. Diz o autarca que é obrigação dos municípios garantirem “quantidade, qualidade e estabilidade da água”. “Como as coisas estão hoje, há sempre risco de haver rupturas e estes oito municípios ficarem sem água. Estamos no Alentejo e olhamos para Faro.” Diz também que já se fizeram duas intervenções nas fissuras do paredão da barragem, mas o problema persiste: “Os técnicos dizem que, para ser reparada, tem de ser fechada, esvaziada e ficar inoperacional durante dois anos.”
A água viria de onde, nesse cenário? “Não vem, não temos alternativa.”
Os ambientalistas da Zero contra-argumentam que continua por “aferir a viabilidade de fornecimento” a partir das barragens da Apartadura e do Maranhão, nas proximidades. A esse argumento, o autarca do Crato diz que o Maranhão é a sul e que “não tem lógica fazer subir a água”, “tem de haver um racional económico”: a água teria de ser bombeada, pelo que “os custos financeiros e energéticos seriam altíssimos”.
Há um ano, depois de conhecidos os estudos de impacte ambiental e o Relatório de Conformidade Ambiental do Projecto de Execução (RECAPE), a Zero deu um parecer desfavorável: “O projecto não é solução para promover a economia da região” e é “mais um exemplo das más decisões de utilização dos escassos dinheiros públicos que temos para promover o nosso desenvolvimento, com a agravante de gerar impactes ambientais e sociais negativos”.
Para além da inundação da aldeia do Pisão, a Zero apresentou quatro razões. Diz que “é claro” que o abastecimento público de água “não é a principal finalidade”, pois está previsto que 1% da água da albufeira do Pisão seja para consumo público e 65% para uso agrícola (o resto é para outros usos e armazenamento). Diz que “o combate ao despovoamento no Alto Alentejo é outro ‘argumento de venda’ do projecto” e que a “CIMAA estima promover a fixação de 340 a 400 pessoas na região, mas [que] concede que o projecto não ‘seja capaz de inverter a previsão de despovoamento’, sendo mais um projecto público inconsequente enquanto solução credível para atacar este problema”.
“Dizer que é importante para fixar população é outro chavão”, diz Horta. “Vinte anos depois, o Alqueva continua a perder população ao ritmo igual ao das décadas anteriores à barragem.”
Um argumento sempre ouvido sobre o Pisão é o de que, se não se fez no Estado Novo, quando havia mais pessoas ali, porquê fazer agora? O presidente da câmara responde: “Podemos conformar-nos e ficarmos fechados numa cerca, aqui neste estado puro, para as pessoas nos virem cá ver, aceitando que hoje somos cem mil e daqui a dez anos somos 60 mil. Ou podemos tentar reter as pessoas e atrair indústria.”
Outra razão da Zero está no próprio “estudo socioeconómico divulgado na consulta pública”. “Toda a área beneficiada por rega está em apenas 77 explorações, sendo que os 120 milhões de euros de investimento via PRR são, na prática, um apoio de dois milhões de euros distribuídos por 57 particulares, sobretudo grandes proprietários.”
O presidente da câmara diz: “A nossa região é de sequeiro e não temos capacidade de aumentar a água de regadio. Com a barragem, vamos aumentar 5500 hectares de regadio, e um hectare de regadio produz oito vezes mais do que um hectare de sequeiro. Não é por acaso que se diz que a água é o petróleo do futuro.”
Mais difícil no futuro
Por fim, a Zero avisa que “ocorrerá a destruição de centenas de hectares de montados, a afectação de ‘14 habitats incluídos na Directiva Habitats, sendo um deles prioritário”, e a fragmentação e o desaparecimento de habitat de espécies de protecção prioritária em risco elevado de extinção, como é o caso do sisão, da abetarda e da águia-caçadeira — destruindo a continuidade entre áreas com importância para a conservação (Zona Especial de Conservação do Cabeção, Important Bird Area de Alter do Chão e Zona de Protecção Especial de Monforte)”. Além disso, “haverá uma artificialização da ribeira de Seda e seus afluentes, com impactes cumulativos à albufeira do Maranhão, e aumento do risco de contaminação dos recursos hídricos através da promoção de sistemas agrícolas intensivos dependentes do uso sistemático de agro-químicos”.
O presidente da câmara admite que “pôr uma parede no rio tem impacto, não há dúvida”, mas que estão previstas muitas medidas de mitigação, e dá um exemplo: vão ser cortadas 39.803 árvores, sobretudo azinheiras (37.960) e sobreiros (1843), árvores protegidas, mas por cada árvore vão ser plantadas três a cinco árvores, e todas no Alto Alentejo.
“Estas pessoas viveram a vida toda a ouvir falar da barragem. Há dias, uma senhora de 90 anos disse-me: ‘Ó presidente, eu queria era ainda ver a barragem feita’”, conta Joaquim Diogo.
João Felizardo, 24 anos, o único jovem da aldeia do Pisão, que fez um curso de Termalismo na Escola Profissional Agostinho Roseta, no Crato, e trabalha na construção civil — “até a Ana já se raspou” —, “não é a favor, nem contra”, só pede uma decisão. “Percebo a parte dos meus pais, que são contra, e a dos outros, que querem. O problema é que não se faz nada no Pisão porque ‘vem aí a barragem’. Não se põe um paralelo na estrada porque ‘vem aí a barragem’, não se põe um lancil porque ‘vem aí a barragem’. Qualquer investimento é visto como um desperdício. Oiço isso há 24 anos. Há quem oiça há 70.”
A Operação Influencer, a investigação do Ministério Público que levou à queda do Governo socialista de António Costa, em Novembro, fez emergir — para além das suspeitas concretas — um problema central do século XXI: até onde vamos sacrificar a natureza em nome do investimento nas novas tecnologias e na transição energética? Como conciliar as duas com prejuízos mínimos para natureza e progresso? Era difícil há 70 anos, é difícil hoje e será mais difícil no futuro.
Correcção: a frase “vêem-se sempre lobos ou veados” foi erradamente atribuída a António Sá; foi dita por outros entrevistados.