Juízes recusam direito à greve das polícias e criticam “exageros” nos protestos

Manuel Ramos Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, admite “tensão”: reacção da PGR no caso da Madeira foi “precipitada” e “desproporcionada”.

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O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) admite que o actual momento é de tensão entre os juízes e o Ministério Público (MP), não deixa de criticar as procuradoras do caso da Madeira, e mesmo Lucília Gago, que fez uma leitura "precipitada" sobre o juiz de instrução em comunicado público. Na sequência desse caso, Manuel Ramos Soares propõe que a lei seja alterada para clarificar que os juízes possam proceder ao interrogatório com os envolvidos em liberdade. Mas vai mais longe: sugere que o poder legislativo mude a Constituição para ficar claro que a liderança da Procuradoria-Geral da República é de apenas um mandato não renovável.

Tem-se assistido nos últimos meses a situações de tensão entre as pretensões do Ministério Público e as decisões de juízes (casos da Madeira, Santa Casa, Influencer). Isto resulta do normal funcionamento da justiça ou considera que existe um maior confronto entre as duas classes?
Não há confronto. Há, de vez em quando, momentos de maior tensão. Aquilo que está a acontecer é a normalidade das coisas. Não podemos ficar espantados por haver um juiz que não se limita a carimbar aquilo que o MP lhe leva, senão não era preciso haver juiz de instrução.

O Conselho Superior da Magistratura (CSM) decidiu não abrir qualquer averiguação ao facto de três arguidos do processo da Madeira terem ficado detidos 21 dias, sendo posteriormente libertados. Isto é normal?
Não, não é normal que as pessoas estejam detidas 21 dias em primeiro interrogatório. Não é normal nem está certo. O que está na lei é que as pessoas sejam apresentadas [a juiz de instrução] em 48 horas, não está na lei que o interrogatório tenha de terminar em 48 horas. Pode terminar depois, mas um dia ou dois. 20 dias nunca tinha acontecido.

O que sei foi o que vi na comunicação social: foi preciso corrigir lapsos no despacho de indiciação. Por outro lado, os documentos apreendidos vieram aos bochechos da Madeira. Dizer que este primeiro interrogatório demorou um tempo, objectivamente excessivo, porque o juiz foi demasiado lento ou porque a polícia se atrasou a enviar os documentos pode ser verdade, mas precisa de uma análise. O problema disto é não haver um mecanismo expresso na lei que permita a um juiz olhar para o caso e dizer: "Eu não consigo acabar isto em quatro ou cinco dias, isto vai demorar 20 dias." Portanto, se não houver risco de fuga, o juiz poder libertar as pessoas, eventualmente apreender os cartões de cidadão, e essas pessoas responderem ao interrogatório sem estarem detidas.

Com a lei actual, isso não seria possível?
Não. Quem fizer uma interpretação literal da lei não retira isso. A interpretação comum dos juízes é a de que não podem libertar o detido enquanto não terminar o interrogatório. Mas podemos recuar até ao momento de detenção. Pode-se discutir se uma detenção é mesmo necessária, se se antevê que as pessoas vão estar 20 dias em interrogatório. Não devemos legislar a quente, mas pode haver uma melhoria pontual da lei que resolva um conjunto de casos.

A análise do que se passou neste caso da Madeira não devia ser feita pelo CSM?
Não sei se o CSM vai fazer algum tipo de averiguação, mas se o fizer é delicado. O Conselho Superior da Magistratura não tem com os juízes a mesma relação que a procuradora-geral tem com o procurador. A procuradora-geral é a titular máxima daquela posição processual e é superior hierárquica do procurador. O CSM, em relação ao juiz, é apenas o órgão disciplinar. Que indício é que há neste momento de uma infracção?

Como é que interpreta o impacto que têm tido estas recentes investigações do MP, como as demissões de António Costa e de Miguel Albuquerque, no desenrolar da política nacional?
Uma coisa é o processo e as consequências do processo. É o que está na lei. Não há nenhuma norma que obrigue um primeiro-ministro ou um presidente de um governo regional a demitir-se se for investigado. Essa avaliação é política, escapa aos mecanismos da justiça. Penso que o primeiro-ministro já foi constituído arguido num processo de difamação, naquele caso do Ministério das Obras Públicas e do computador do adjunto Frederico Pinheiro, e não se demitiu. Os processos e o impacto que eles podem ter no exercício da função política não são iguais. Não se pode pedir à justiça: "Olhe, não faça isto, não investigue, não acuse, não vá o primeiro-ministro ou alguém fazer uma avaliação política e demitir-se."

Alguma vez um juiz tinha sido alvo de uma exposição ao CSM como a que fizeram as procuradoras do caso da Madeira?
Não sei, talvez. Mas o juiz não mandou nenhuma queixa das procuradoras à procuradoria-geral quando andou uma semana a receber documentos aos bochechos. Quando se traz uma pessoa para primeiro interrogatório, uma das funções que o juiz tem é confrontar as pessoas com as provas que o Ministério Público recolheu. Ora, para as confrontar, elas têm de estar na mesa do juiz. Não vejo, francamente, que haja razão para o Ministério Público fazer essa comunicação ao conselho. É um bocadinho atípico.

Foi uma forma de pressão ao juiz de instrução?
Presumo que sim. Não vejo outra razão para isso. O CSM não tem nenhuma forma de chegar ao juiz e dizer: "Olhe, faça lá mais rápido." Isso não existe. O CSM pode é levantar uma investigação de natureza disciplinar ao juiz e, portanto, uma participação com uma finalidade dessas no meio de uma diligência é uma actuação que considero imprópria.

Se era para tomar medidas de gestão, de colocar auxiliares a ajudar o juiz, naquela fase, também não me parece que fosse possível. Tudo o que fosse o conselho entrar no meio da diligência para tomar alguma acção seria visto como uma intromissão na liberdade do juiz. E, portanto, o conselho fez muito bem em ficar quieto.

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Manuel Ramos Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses Daniel Rocha

Diz que é uma pressão e que é impróprio. Mas as pessoas ficaram a saber que existiu aquela exposição através de um comunicado da PGR. Também considera impróprio que tivesse sido dado a conhecer ao país dessa forma?
O comunicado da PGR é todo informativo, tem uma parte absolutamente razoável e importante, em que explica a posição do Ministério Público sobre o que está em causa e também diz que os mecanismos de hierarquia e de coordenação funcionaram. Depois, tem uma outra parte que me parece menos própria relativamente a uma demora processual de 21 dias que causou muito alarme social, sem se saber exactamente porque é que essa demora ocorreu e se ela tem alguma coisa de estranho ou de ilícito, sem se perceber se a responsabilidade é toda do juiz. Aquela parte do comunicado parece querer dizer que isto demorou 21 dias porque o juiz demorou 21 dias que não tinha que ter demorado.

Sim, é isso.
Pois, mas não estou nada certo disso. Este juiz já fez muitos interrogatórios e não consta que tenha demorado 21 dias nos outros. No comunicado da ASJP, consideramos essa atitude precipitada. Antes de se perceber porque é que uma determinada diligência demora tanto tempo, parece-me precipitado dizer, de uma forma indirecta, que a culpa é toda do juiz. Até pode acontecer que não haja responsabilidade no plano da imputação de alguma infracção a ninguém.

Esta procuradora-geral tem tentado descredibilizar os juízes?
Não. Não acho que seja isso que esteja em causa neste comunicado. Os casos são complexos, geram alarme, as instituições têm de reagir e umas vezes reagem melhor, outras vezes reagem pior.

O comunicado da associação sindical fala em tentativa de descredibilizar o juiz.
O comunicado não visou apenas o comunicado da Procuradoria-Geral da República. Nesses dias, houve manobras sujas.

Está a falar de quê?
Estou a falar das notícias que saíram num jornal, não sei de onde vieram, sobre a vida pessoal do juiz e o seu passado, e, portanto, isso também não é próprio e aconteceu. Não estou a dizer que isso tem a ver com o MP. A lei diz que os processos disciplinares são eliminados do cadastro ao fim de dez anos.

Como é que avalia o mandato de Lucília Gago?
Não vou fazer uma avaliação do mérito do mandato, porque acho que não me compete fazer isso. Quero apenas salientar que foi difícil. E quais são as dificuldades? Quando aparecem processos que, por definição, são intrusivos na vida pública. Um processo que leva a investigação dentro do gabinete de um primeiro-ministro é, por definição, intrusivo. Ou seja, esse processo cria imediatamente um efeito que outros processos não têm. E, nessa medida, o mandato desta procuradora-geral fica marcado por esses elementos de dificuldade. Há hoje muito mais investigações sobre actos de natureza corruptiva ou semelhante que envolvem figuras públicas, figuras do desporto, figuras da justiça, dos governos. E, como há mais processos, são maiores as probabilidades de haver essa intrusão.

O mandato de Lucília Gago termina em Setembro. Que interpretação é que faz da lei, que o mandato deve ser renovado ou que é único?
A interpretação literal da Constituição permite uma renovação do mandato, mas não devia permitir e, portanto, isso até devia ser matéria a clarificar numa revisão constitucional. Não é suposto que haja dúvidas interpretativas sobre uma norma tão fundamental para a organização do Estado.

O ex-procurador-geral da República Cunha Rodrigues disse esta semana que a troca de acusações entre o MP e os juízes só descredibiliza a justiça. Como viu esta análise?
Acho que é exagerado dizer que há um conflito.

No mesmo dia, o senhor disse que tinha havido "um mau perder" da parte do MP, o que também é uma linguagem forte.
Posso explicar isso. Não acho que haja um mau ambiente. Houve um momento de tensão. Não vale a pena estarmos com floreados. Houve um momento de tensão que resulta de diferentes avaliações do mesmo facto. Esse momento de tensão resulta da circunstância de ter havido um comunicado da PGR com um sentido que os juízes consideraram que num segmento era precipitado.

O mau perder a que me referi foi dizer que é normal que as entidades ou as pessoas que estão no processo não gostem, fiquem incomodadas, contrariadas com reacções do tribunal ou com decisões do tribunal contrárias aos interesses que defendem. Isso é normal e é por isso que há recurso. Mas já não é tão normal que essas decisões contrárias aos interesses acabem por levar, num comunicado oficial de uma das entidades - no caso, a PGR -, a uma reacção desproporcionada.

Sobre o funcionamento actual do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), concorda com a forma como está organizado, em que um juiz que nunca teve contacto com o processo complexo possa ser chamado a interrogar arguidos detidos e determinar as medidas de coacção?
Não concordo. Não sabia. Penso que o conselho terá autorizado isso em tempos. Isso vem de trás, mas está mal. O conselho já disse que vai reorganizar a forma como os turnos estão organizados e acho que faz bem. Não é normal, não é racional do ponto de vista da distribuição do trabalho, que eu, que estou num tribunal de instrução e acompanho um determinado inquérito e autorizo buscas, escutas telefónicas ou outras diligências durante um ano ou dois em que dura a investigação, e um dia o Ministério Público pede mandados de detenção e mandados de busca para fazerem uma diligência e trazer as pessoas a interrogatório e não sou eu que vou fazer esse interrogatório, é um outro juiz que trabalha no gabinete ao lado, que nunca viu o processo. Isso não está bem.

Este funcionamento também pode provocar mais demoras?
Claro. Se uma pessoa vai fazer um interrogatório de um processo complexo que nunca viu, se tiver uma tarde ou duas para o ler, quem já conheceu o processo faz mais rápido. Estamos a falar de prazos curtos, 48 horas, não é?

Ainda sobre o TCIC, há juízes que não cumprem os critérios de experiência e classificação exigidos pela lei e que são escolhidos porque mais ninguém quis concorrer para esse lugar. Como é que se resolve esta questão?
Não se pode dizer que não cumprem, porque a lei tem o plano A e o plano B. É desejável que não aconteça isso, mas não há alternativa. O sistema não permite forçar o juiz a ir para ali.

Os melhores juízes, por assim dizer, aqueles que têm melhor classificação, fogem do TCIC?
Não sei se fogem, mas acha que há algum juiz normal que goste de estar nestes processos e depois chegar a casa e abrir o jornal e ver o seu nome arrastado na lama?

Temos assistido no último mês e meio a protestos de polícias, como não se tinha visto antes. Volta-se a falar do direito à greve destes profissionais da PSP e da GNR. Choca-o este ambiente a que se está a assistir?
Os polícias têm razão por terem ficado incomodados com o facto de o Governo ter atribuído um subsídio de risco a uma polícia e não ter atribuído a outras que têm um grau de risco equiparável. Se têm o direito de protestar, têm. Se protestaram sempre bem até agora, não. Já houve muitas reacções que me pareceram excessivas.

No Capitólio foi uma delas.
Sim, e a direcção nacional, que já diz que está solidária com as pretensões dos seus homens e mulheres, já disse que na forma também houve exageros aqui e ali. Os polícias, nas suas formas de reivindicação do direito que consideram ter, devem ter cuidado na forma como o fazem, porque é mais fácil perder a razão do que tê-la. E, quando se tem razão, deve-se ter o cuidado de não a perder, porque quando se perde já não se voltar a recuperar.

E o direito à greve?
O direito à greve das forças de segurança e militares está excluído constitucionalmente e, portanto, isso implicaria uma revisão constitucional. Eu também faço parte de uma profissão que já fez greves e que é polémico quando as faz. Eu acho que não é necessário que os polícias tenham esse direito e também não acho que seja adequado. Se amanhã houver uma proposta de um partido qualquer no sentido de atribuir às polícias a possibilidade de direito à greve, acho que o Parlamento não deve aprová-la. A questão dos juízes é uma questão que se colocou em 1976. O poder constituinte resolveu não permitir a greve a estas entidades. Há muitos países, por exemplo, onde a função pública não pode fazer greve.

Teme que o momento político seja propício a mexer-se no direito à greve dos polícias?
Não. Isso é matéria que se discute agora a propósito de uma proposta eleitoral de um partido. Mas é matéria que vai morrer rapidamente.

Tem havido acusações de que as polícias estão muito ligadas a movimentos inorgânicos, e alguns deles radicais. Tem essa sensação de que as polícias estão a radicalizar-se?
Não tenho conhecimento dos factos para ter uma opinião sobre isso. Noto, mas isso é comum a todo o movimento sindical, que as manifestações inorgânicas são cada vez mais e mais intensas e acabam por substituir, em muitos momentos, a acção dos sindicatos ou das entidades representativas, orgânicas e formais. Isso acontece também na polícia, é evidente. Mas nós vemos movimentos nas polícias que estão desfasados daquilo que é a acção dos seus sindicatos representativos. Se lá estão infiltrados, não sei.

Neste momento de pré-campanha eleitoral, como é que tem visto as medidas para o sector da justiça previstas nos diferentes programas eleitorais?
A justiça é uma área praticamente imune à ideologia. Não há programas de justiça de esquerda nem de direita. Não há ali nada de verdadeiramente revolucionário. Um aspecto, diria eu, mais inovador, mais surpreendente e, a meu ver, até positivo, vem da Aliança Democrática. Propõe criar-se uma entidade que trabalharia na dependência do Parlamento, para pensar com tempo e de uma forma alargada uma proposta de reforma estrutural para a justiça, que afastasse essa reflexão e essa discussão do interesse de curto prazo dos políticos.

Esta comissão não era a comissão que ia fazer a reforma, mas ia apresentar, de uma maneira muito fundamentada, uma proposta ao Parlamento. Essa ideia parece-me interessante porque ela resolve dois problemas. Primeiro, coloca no sítio certo a reflexão sobre a reforma, que é no Parlamento. Por outro lado, desliga essa discussão das mudanças estruturais do pequeno horizonte dos quatro anos com que os governos e os parlamentos trabalham. Há reformas que precisam de cinco, seis, dez anos.

E sobre o combate à corrupção, vê algum contributo significativo nos programas eleitorais?
Nós temos mecanismos suficientes para combater a corrupção. Já temos hoje mais meios, temos muito mais investigações, temos mais condenações, os processos ainda demoram. Na demora dos megaprocessos, é possível melhorar. Agora não precisamos de penas mais elevadas. Um corrupto que acha que vai conseguir ganhar um milhão ilícito não deixa de fazer isso só porque a pena em vez de ser de oito anos é de dez.

O mecanismo preventivo mais importante é a repressão. Ou seja, se tivermos um sistema processual penal que funcione de maneira mais rápida e eficaz, punindo as pessoas que devem ser punidas e absolvendo aquelas que não devem ser punidas, a função preventiva é enorme. Causa em pessoas que pensem em ser corruptas o receio de virem a ser presas.

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