Martin Scorsese em Berlim: “Aprendi tudo com o cinema. Porque não poderiam outros?”

O realizador veio à Berlinale receber um Urso de Ouro honorário de carreira. O cinéfilo veio mostrar a sua homenagem a Michael Powell e Emeric Pressburger. Ficamos todos a ganhar.

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Cineasta Martin Scorsese recebeu na 74.ª Berlinale um Urso de Ouro Honorário pelo conjunto da sua carreira CLEMENS BILAN/epa
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Com 81 anos feitos, Martin Scorsese, o realizador de Alice Já Não Mora Aqui, Taxi Driver, O Touro Enraivecido, O Rei da Comédia, Tudo Bons Rapazes, Casino, Silêncio, O Irlandês, Assassinos da Lua das Flores, etc., continua a falar de cinema como se não tivesse 81 anos. Antes, como um rapaz que acabou de descobrir Satyajit Ray, Kenji Mizoguchi, Akira Kurosawa. Todos cineastas que viu pela primeira vez ainda em miúdo, numa televisão a preto e branco, dobrados em inglês e com intervalos para a publicidade — recordou agora aos muitos que o quiseram ouvir na conferência de imprensa que deu ao final da tarde de terça-feira, na 74.ª Berlinale, onde veio receber um Urso de Ouro Honorário pelo conjunto da sua carreira.

“Se um rapaz como eu — um puto de Nova Iorque, filho de emigrantes, que não tinha livros em casa e aprendia tudo com o cinema podia ver estes filmes e sentir que a vida podia mudar, podia ser diferente, porque não outros?” Com tal mensagem, Scorsese quer explicar não só o seu amor ao cinema, mas também o porquê da sua atenção ao restauro de clássicos, à recuperação de filmes esquecidos ou maltratados. “Porque havia muita dificuldade em encontrar boas cópias de alguns filmes, e às vezes nem sequer sabíamos nada destes realizadores à excepção dos seus nomes. Havia uma mística em redor de alguns filmes e de quem os fazia, havia uma magia da descoberta”, diz.

É essa magia que, à sua maneira, Scorsese tem procurado partilhar através da Film Foundation da qual é co-fundador, seja através dos documentários que apresentou sobre o cinema italiano e o cinema americano, seja na defesa de cineastas mais jovens como Joanna Hogg (que esta quarta-feira moderou um diálogo com o realizador no programa paralelo Berlinale Talents), Josephine Decker ou Jonas Carpignano. Porque, para ele, “um filme tem um efeito no modo como pensamos na vida e nas pessoas à nossa volta, no modo como nos comportamos". “Há aqueles filmes que só se vêem uma vez, mas recordamos para sempre, ainda que não os voltemos a ver. Há aqueles que voltamos a ver 30 anos depois e que nos parece terem mudado: na verdade, o filme é o mesmo. Nós é que mudámos. Crescemos com o filme, tal como acontece com as sinfonias de Beethoven.”

Scorsese trouxe uma prova disso, na primeira pessoa: chama-se Made in England — The Films of Powell and Pressburger (Berlinale Special) e é um documentário do britânico David Hinton, do qual é co-produtor e apresentador. É uma homenagem deslumbrante, uma quase comovente lição de cinema, de evidente investimento pessoal do cineasta norte-americano: Scorsese descobriu os filmes da dupla formada pelo britânico Michael Powell (1905-1990) e pelo húngaro Emeric Pressburger (1902-1988) nas tais sessões televisivas e teve, anos mais tarde, a sorte de conhecer Powell — e de o apresentar à terceira e última mulher, a sua montadora de sempre, Thelma Schoonmaker.

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Powell e Pressburger na rodagem de Os Sapatos Vermelhos, dr

Ainda hoje, Powell e Pressburger continuam a ser injustamente, insuficientemente conhecidos, apesar do mítico Os Sapatos Vermelhos (1948, filme que inaugurou o nosso cinema São Jorge) e de outros clássicos como A Vida do Coronel Blimp (1943), Sei para Onde Vou (1945), Um Caso de Vida ou de Morte (1946) ou Quando os Sinos Dobram (1947). Argumentistas, produtores e realizadores conseguiram impor a sua independência ao sistema de produção britânico durante a década de 1940: a sua companhia, The Archers, foi “precursora” dos sonhos da nova Hollywood, possibilitando-lhes arriscar experiências formais em absoluta liberdade de produção no interior do sistema. As novas vagas do cinema pós-II Guerra Mundial vieram soterrar a dupla, que se separou em finais dos anos 1950; já a solo, Powell nunca se recomporia do desastre comercial e crítico da obra-prima entretanto reavaliada Peeping Tom/A Vítima do Medo (1960).

Enquanto filmaram, contudo, Powell e Pressburger foram o exacto tipo de vozes individuais de que o cinema mais precisa hoje em dia — “a única coisa a que nos podemos agarrar pelo meio da tecnologia que muda de forma tão exaustiva e rápida”. Para Scorsese, isso é aquilo que importa: “Não interessa se se faz um TikTok ou um filme ou uma curta-metragem ou uma mini-série, não estamos aqui para ser escravos da tecnologia. O que importa é deixar a voz pessoal vir ao de cima, ver outros pontos de vista, outras possibilidades. É por isso que eu não acho que o cinema esteja moribundo — ele nunca foi suposto ser uma coisa única. Está sempre a transformar-se.”

E Martin Scorsese continua curioso por ver essas outras ideias, essas outras possibilidades — “o meu problema, hoje, é o tempo. Tenho que escolher muito bem aquilo em que me quero investir! E enquanto cá andamos, o que há de melhor do que comunicar através da arte?”

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