No Movimento Civil de Agricultores cabem todos os descontentes
Corte de apoios à agricultura biológica e produção integrada fez transbordar o descontentamento do sector primário. Quem são os agricultores do movimento que ocupou estradas por todo o país?
Na sua propriedade, em Évora, António Saldanha tem uma produção relativamente diversificada. Já teve vários tipos de produção: cabras para produção de leite em regime intensivo, depois leite em regime extensivo, vacas em extensivo, fruta em intensivo e em extensivo, cereais em extensivo. Uma “propriedade atípica”, resume, numa zona de sequeiro com água própria que lhe “permite felizmente produzir praticamente o que quiser”. No último ano, decidiu apostar nos regimes ecológicos incentivados pela Política Agrícola Comum e seguir as regras “bastante estritas” estabelecidas para a agricultura biológica e a produção integrada, que implicam alguma perda de produtividade.
Só que os apoios prometidos para compensar este tipo de produção têm tido vários atrasos nos últimos meses. Para produtores como António Saldanha, investidos na produção mais sustentável, a gota de água fez transbordar o copo em 25 de Janeiro, quando os incentivos à produção finalmente chegaram - com um valor muito abaixo do esperado, prejudicando um sector já estrangulado pelas baixas remunerações.
Se no dia 25 houve um choque, “no dia 26 a indignação era geral”. Foi na sexta-feira passada que vários agricultores e outros produtores começaram a ser adicionados a um grupo do WhatsApp para confirmarem se o corte nos pagamentos estava mesmo a afectar a todos. O grupo foi crescendo exponencialmente e em poucas horas atingiu o limite de mil participantes; em menos de 24 horas, já eram 15 os grupos de agricultores criados para várias regiões do país, tentando organizar a uma voz uma cacofonia de queixas.
Há quem fale em 32 mil agricultores nas ruas por todo o país. Só nos 18 grupos de WhatsApp entretanto criados, serão mais de 15 mil membros. Os participantes são de quase todas as regiões - “só a Estremadura é que se está a manifestar menos”, nota António Saldanha. Ao pesquisar os nomes dos que vão falando à imprensa, encontramos agricultores como Ricardo Estrela, dirigente da Associação de Produtores Agropecuários da Beira Baixa (Ovibeira), ou José Azoia, o “rei” do grão-de-bico. Não há, por ora, líderes claros desta revolução, que multiplica porta-vozes para cada uma das regiões que está a organizar-se. Aliás, em vez de porta-vozes, há quem prefira que se use a expressão “motivadores”: aqueles que incentivam os outros a funcionar como um movimento.
Uma dessas “motivadores” é Ana Rita Bivar, 53 anos, cujo contacto foi dado à imprensa para dar conta das movimentações dos agricultores de Trás-os-Montes, Douro e Minho, que se concentraram junto à fronteira. Mudou-se há 15 anos para Trás-os-Montes, onde gere com o marido uma propriedade em Freixo de Espada à Cinta. É sonoro o entusiasmo com que descreve, por telefone, a velocidade com que a ideia de um protesto contra os cortes nos apoios se transformou, em apenas quatro dias, em planos concretos para uma manifestação. “Isto é incrível, é uma demonstração sem precedentes na nossa história do exercício da cidadania.”
Perguntamos se são muito diferentes os desafios dos agricultores a Norte, onde o perfil de exploração é claramente diferente de outras regiões. “Há muito mais preocupações comuns entre o norte e o sul do que imaginaríamos”, assegura, “milhares de agricultores que estavam todos com o mesmo problema”. “Temos aqui desde o grande latifundiário do Alentejo até e pessoa do minifúndio, com rastas no cabelo e que faz yoga”, descreve, bem disposta. Mas o tom logo passa a mais sério: descreve “vidas viradas do avesso”, muitos problemas financeiros. “Muitas pessoas estão a pôr os últimos tostões no gasóleo para virem protestar”, lamenta.
“Apartidário”?
A pergunta que não quer calar, e que surge cada vez que aparecem movimentos deste género: haverá actores políticos por detrás destas manifestações? “Não vou falar de política, o que estamos a fazer é apartidário”, começa logo por dizer António Saldanha, recusando a associação do movimento a um ou outro partido.
Durante a manhã, em Elvas, alguns elementos do Chega vieram apoiar a concentração de agricultores, mas também aqui os manifestantes quiseram demarcar-se da presença dos políticos. “Agradecemos que nos venham apoiar, agora é importante que se perceba que esta manifestação é apartidária”, disse à RTP António Lino Neto, um dos participantes.
“Dentro dos milhares de agricultores que estão a manifestar, é claro deve haver pessoas do Chega, do PCP e até do PS”, normaliza Ana Rita Bivar. “Mas antes de serem do partido, são agricultores”, assegura. “Neste momento, a nossa luta é pela soberania alimentar do nosso país.” Aliás, mais do que a colagem de partidos, a produtora denuncia “uma pressão brutal” sobre alguns participantes do protesto com ligações a partidos políticos para que abandonem o protesto ou mesmo que revelem informações dos organizadores.
Não é preciso ir muito longe para, de facto, encontrar pessoas com outro tipo de ligações entre as que se juntaram ao protesto. Nuno Mayer foi uma das caras do movimento nas televisões ao longo da quinta-feira (a conversa com o Azul, aliás, foi interrompida para uma dessas intervenções). Chegou à agricultura há poucos anos, pela via da inovação, com uma proposta de olival de produção biológica que foi distinguida com um Prémio Nacional de Agricultura e uma plantação de 40 hectares na freguesia de Olaia, em Torres Novas, que foi inaugurada em 2022 pela própria ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes. Apesar de não ter militância partidária, Nuno Mayer é secretário da junta de Freguesia de Olaia, eleito pelo Partido Socialista.
A sua participação no movimento, contudo, respeita o carácter “apartidário” tão apregoado por todos os participantes nos protestos: “há gente de esquerda e de direita e todos votaram que não eram permitidos partidos políticos”. E tal como aconteceu com o Chega na situação de Elvas, conta que também pessoas identificadas com o Bloco de Esquerda e a CGTP vieram dar apoio às arruadas na autoestrada. A ajuda era bem-vinda, mas as bandeiras não o foram: “a única bandeira que se vê aqui é a portuguesa.”
Não foi, aliás, a participação política, mas sim o empreendedorismo que lhe granjeou alguns dos contactos que tem feito render nesta última semana. Desde o último fim-de-semana que tem estado em contacto com os assessores do gabinete da ministra da Agricultura - “curiosamente, por WhatsApp” -, transmitindo as reivindicações que se iam tornando consensuais nos grupos, com foco nos malfadados apoios à produção.
As suas reivindicações em particular, nota Nuno Mayer, já tinham sido respondidas com as medidas asseguradas dos últimos dias, mas a sua formação de base como gestor e especialista em marketing o faziam lembrar de que faltava mais algo: a atenção do país. O colectivo já estava lançado, a decisão estava tomada e a união foi conseguida para, esta quinta-feira, os agricultores saírem à rua por todo o país, lançando-se para o centro das atenções mediáticas.