“Há pouco que a AIMA possa fazer” pelas condições em que migrantes dormem no aeroporto

Em entrevista ao PÚBLICO-Renascença, o presidente da AIMA diz que o impacto positivo do trabalho deste novo organismo só “será visível decorrido um largo período de tempo”.

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Luís Goes Pinheiro é o primeiro presidente da Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), a entidade criada em 29 de Outubro do ano passado para centralizar a política de acolhimento e integração dos migrantes, avaliação dos pedidos de asilo e concessão de autorizações de residência, juntando parte das competências do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), que foram extintos. É licenciado em Direito e pós-graduado em Direito Penal Económico e Europeu pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, foi o responsável pelo Simplex e dirigiu os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde durante a pandemia de covid-19. ​A ministra da tutela, Ana Catarina Mendes, justificou esta nomeação, em Julho do ano passado, pelo seu "conhecimento da Administração Pública e experiência na simplificação de processos​" e "compromisso com a necessidade de executar uma boa política de integração”.

Em quase três meses de existência da AIMA, multiplicam-se os problemas, com a substituição dos inspectores do SEF nas fronteiras por agentes da PSP e militares da GNR sem experiência neste tipo de missão, as demoras na concessão de autorizações, ou a permanência de requerentes de asilo à espera e a dormir nos aeroportos. O que não está a correr bem?
A reestruturação da área das migrações, e em particular a fusão da componente administrativa do SEF com o ACM, que deu origem à AIMA, obrigou a uma estruturação profunda de toda esta organização. Seria praticamente impossível não haver nenhum problema neste período de tempo. É bom lembrar que a herança do modelo anterior é pesada. No caso da AIMA, são 350 mil processos pendentes [de pedidos de autorização de residência] numa estrutura que tinha, e mantém, uma procura diária muito alta. Somando a isso a necessidade de estruturar um organismo novo, eu diria que não tem corrido mal. Tem corrido bem.

O tempo necessário para a AIMA e as polícias adquirirem todas as competências de uma instituição com o tempo de existência do SEF e as suas especificidades e qualificações pode estar a contribuir para uma demora e uma confusão na atribuição de competências. Com aquilo que se sabe hoje, continua a achar que o SEF deveria ter sido extinto?

Eu não tive qualquer responsabilidade na extinção do SEF. Acredito que ter na mesma casa a componente administrativa e as outras relevantes para o processo de integração me parece ser uma solução com resultados muito positivos no futuro. A AIMA não é só a componente administrativa do SEF, a AIMA também tem as competências que eram do ACM [de acolhimento e de integração]. Temos vindo a criar equipas mistas nos balcões de atendimento, com pessoas que trabalhavam no SEF e no ACM, criando condições para que as atribuições da AIMA, que são muito mais amplas do que eram as do SEF, possam ser aplicadas de forma plena no momento do atendimento.

Ainda que, durante muito tempo, possa haver um conjunto de processos que se arrastem e que venham adensar os problemas que já vinham de trás.
Não é mais tempo. Eu digo é que 350 mil processos pendentes é mais do que o SEF conseguiria despachar num ano, mesmo que nesse ano não recebesse mais processos. Com uma dimensão destas, naturalmente que o serviço nasce pressionado e que a percepção das pessoas é de que as coisas não funcionam de forma perfeita. Uma situação dessas nem se resolve num ano. E por isso, desde a primeira hora, dissemos que precisávamos de um ano e meio para resolver este problema. Desde a primeira hora identificámos que dificilmente resolveríamos isso apenas com mais recursos humanos e pusemos em marcha um plano para a reestruturação tecnológica da AIMA.

Quando começará a ser visível o impacto dessa transição tecnológica?
Do ponto de vista do utente, muito brevemente. Na sequência da publicação [na semana passada] do decreto que veio regulamentar a Lei de Estrangeiros e que cria a possibilidade de a AIMA passar para o ambiente digital todos os serviços, seja na área documental, pedidos de autorização de residência, pedidos de renovação, pedidos de prorrogação… Este diploma permite-nos também desenvolver esforços com outras entidades da Administração Pública, para criar automatismos que dispensem que o utente tenha de ir buscar informação a outros lados. Este diploma vai permitir, muito brevemente, disponibilizar o portal, e o nosso objectivo é ter os principais serviços da AIMA todos na componente digital. Disponibilizar uma entrada digital e depois não ter capacidade de resolver [os processos] internamente também não vai resolver problema nenhum. Pretendemos, paulatinamente, ir criando vagas para esse atendimento adicional, criando maior velocidade para o tratamento interno dos mesmos serviços.

Um exemplo concreto das dificuldades previsíveis na altura da extinção do SEF era o acesso às bases de dados com informação confidencial de migrantes que os inspectores do SEF podiam consultar para avaliar se de facto estas pessoas estavam em condições de entrar em território português. Esta foi uma das questões indicadas como podendo tornar os procedimentos muito mais complexos e até susceptíveis de criarem falhas de segurança, porque os funcionários da AIMA não têm acesso a esses dados. Como se resolve este problema?
O acesso aos sistemas é feito automaticamente e, não havendo nenhum dado relevante nos sistemas, a resposta é imediata. Quando há alguma informação no sistema que tem de ser analisada individualmente, é feita uma comunicação com a Unidade de Coordenação de Fronteiras e Estrangeiros [criada em Outubro], que analisa e que responde. Não encontro grande perturbação, porque já antes não eram os funcionários que tramitavam quem fazia as consultas, eram os inspectores, que normalmente não estavam no atendimento. É uma questão de organização. Existe uma entidade que é o Sistema de Segurança Interna, que coordena as forças de segurança e outras forças e que tem promovido encontros regulares entre os interessados para garantir que as coisas fluem da melhor maneira.

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Rui Gaudêncio

Tem havido também problemas novos, posteriores à extinção do SEF, como por exemplo as situações de requerentes de asilo a dormir no aeroporto, uma situação que a Provedoria de Justiça diz não poder continuar.
O que se passa no aeroporto, e que a lei prevê, é que quando um cidadão retido na fronteira pede asilo tem de aguardar na área internacional uma resposta sobre a admissibilidade ou não do pedido. Desde a primeira hora, investimos para termos um atendimento no aeroporto e garantir a redução muito significativa dos tempos que demoramos a tomar uma decisão. Neste momento, [os prazos para] as decisões são, em regra, inferiores a três dias.

E ainda assim é aceitável que as pessoas fiquem três dias no aeroporto sem condições e a dormir no chão?
São três dias em que é necessário ouvir as pessoas, que muitas vezes carecem de um intérprete. Na maioria das vezes, um intérprete específico da sua língua. Muitas vezes são dialectos de países e não é muito fácil encontrar em Portugal pessoas que possam servir de intérprete. Além da própria disponibilidade e do horário desses intérpretes, implica uma entrevista e a decisão, que é emitida pelo conselho directivo da AIMA. Ainda assim, está a ser emitida em menos de três dias. Quanto às condições de alojamento, há pouco que a AIMA possa fazer, a não ser tentar que elas vão melhorando. A maior parte das pessoas que se encontram no aeroporto a aguardar uma decisão sobre o seu pedido de asilo são cidadãos que estão a aguardar uma decisão judicial, porque impugnaram a decisão da AIMA, e essa é provavelmente a principal razão pela qual há uma saturação do estabelecimento gerido pela PSP (Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária - EECIT), que está lotado.

Por duas razões: porque também são alojadas pessoas que são paradas na fronteira enquanto aguardam o voo de regresso e que não pediram asilo; e todas as pessoas que reagem judicialmente, com todo o direito, perante uma decisão da AIMA têm de aguardar a decisão judicial, que é, como imaginam, muito mais demorada. Estou convencido de que, se fosse possível as pessoas terem apenas de aguardar um máximo de três dias no aeroporto, haveria condições de alojamento, já hoje, para todas.

A pergunta é se é aceitável e quem responde por esta situação, se é a AIMA ou a PSP, que está a fazer o controlo de fronteiras?
A lei determina esta regra e a PSP entende que só pode emitir um visto de entrada nas condições em que a lei lhe permite, ou seja, de que não podem permitir a entrada em território nacional destes cidadãos sem que haja uma decisão da AIMA ou, depois, uma decisão judicial. Também é importante lembrar que o SEF, durante a maior parte da sua existência, procedeu exactamente da mesma maneira e mudou o procedimento apenas e só durante a covid-19. O que motivou a decisão de deixar entrar as pessoas que estavam a acumular-se no EECIT, em números muito semelhantes aos que se encontram hoje, foram questões relacionadas com saúde pública.

Considera que o critério de acolhimento de entrada de migrantes em Portugal deveria ser mais apertado para garantir que o país tem condições para acolher as pessoas que nos procuram?
A AIMA deve obediência à lei. E o que a lei determina é o que a AIMA fará ou procurará fazer. Se conseguir fazê-lo da forma mais célere e eficaz possível, seguramente será um passo muito decisivo. Para evitar que haja situações de maior precariedade de cidadãos estrangeiros que residem em Portugal, é preciso garantir o mais rapidamente possível a sua integração plena. E por isso é que definimos quatro prioridades na AIMA. A primeira é claramente a questão documental. É fundamental que, de forma muito empenhada, às vezes até de forma obsessiva, continuemos este caminho no sentido de procurar resolver os processos pendentes e criar condições para não voltar a acumular pendências. Em segundo lugar, criar condições para promover a aprendizagem da língua portuguesa. Durante este trimestre, será lançada uma nova estratégia para a promoção da aprendizagem de língua portuguesa em Portugal e lançado um instrumento operacional para os primeiros dois anos, que determina um conjunto de medidas muito concretas, algumas para executar já durante o ano de 2024.

A AIMA tem também pensado algum mecanismo para proteger os direitos dos migrantes, no sentido de haver entidades no terreno que garantam que estas pessoas não são de facto exploradas no nosso país?
Uma terceira prioridade da AIMA é dar um empurrão decisivo a uma agenda de emprego digno, através da aceleração dos processos de reconhecimento de qualificações e competências. E, finalmente, a nossa terceira prioridade tem a ver com os refugiados. Estamos a trabalhar com as autarquias locais no sentido de criarmos uma rede de centros de acolhimento. Vamos procurar criar clusters [conjuntos] de centros de acolhimento que possam, em função das qualificações e das preferências dos refugiados, mas também de alguns migrantes carecidos de apoio, deslocá-los para áreas onde possam maximizar a sua relação com o mercado de trabalho.

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Na sua opinião, a solução, ainda que temporária, não passa então por alterar critérios de acolhimento e de entrada?
A AIMA não tem estados de alma relativamente à lei que está em vigor.

Mas, conhecendo a realidade, terá uma opinião sobre a mesma.
O que eu sei sobre a vinda de migrantes para Portugal é que a nossa economia tem precisado deles. Aliás, não é só a nossa economia, é a nossa própria demografia.

Não existe aqui a necessidade de rever as condições para acolher de forma digna estas pessoas, que têm vindo para Portugal em maior número?
As populações migrantes são populações com maior risco de pobreza, e principalmente migrantes de fora da União Europeia, que têm maior taxa de desemprego do que a dos residentes nacionais. Devemos estar vigilantes para garantir que adoptamos um conjunto de medidas, e eu já referi algumas, para assegurar a máxima integração. Esses problemas previnem-se actuando a estes quatro níveis: documentação, promoção da língua portuguesa, uma agenda de emprego digno e aposta na reinserção laboral dos refugiados e dos migrantes. Mas a AIMA herdou 350 mil processos pendentes de autorização de residência e esses números mantêm-se praticamente os mesmos.

Isso significa que as pessoas continuam a não dispor de documentação durante muito tempo. Portanto, esse problema, afinal, não vai resolver-se depressa.
Aquilo que eu posso dizer é que, a pouco e pouco, as pessoas vão começar a sentir mudanças, designadamente com a disposição de serviços digitais. Estamos em paralelo a desenvolver sistemas de informação que nos permitem tramitar de forma mais acelerada os processos pendentes. A intervenção que temos de realizar para mudar a forma de trabalhar é de tal maneira transformadora que dificilmente se começará a sentir um impacto notório e visível antes de decorrido um largo período de tempo, designadamente alguns meses. A nossa expectativa é que, depois de termos estas ferramentas implementadas, no prazo de um ano e meio a pendência desapareça e, a partir daí, estarmos capazes de lidar com a procura diária.

Aproximamo-nos das legislativas de Março. Quais deveriam ser, na sua opinião, os compromissos dos partidos em matéria de integração de migrações e de asilo?
Eu ficaria muito feliz se os partidos adoptassem todos eles nos seus programas as quatro prioridades que aqui referi: resolução da questão documental, promoção da aprendizagem da língua portuguesa, uma agenda de trabalho digno, com grande enfoque na agilização do reconhecimento das qualificações e das competências, e a promoção da integração e da inserção laboral dos refugiados e migrantes em situação de perigo.

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