Câmara dos Lordes quer provas de que o Ruanda é seguro para migrantes e opõe-se ao tratado de Sunak
Câmara alta do Parlamento britânico aprova moção inédita que recomenda ao Governo conservador que não ratifique tratado considerado fundamental para a política migratória de Rishi Sunak.
A Câmara dos Lordes do Parlamento do Reino Unido deu na segunda-feira à noite mais um sinal de que a proposta legislativa de Rishi Sunak para enviar migrantes e requerentes de asilo para o Ruanda ainda tem um longo caminho a percorrer antes de se tornar oficialmente lei e poder ser implementada, ao aprovar uma moção inédita de oposição à ratificação do tratado assinado entre os governos britânico e ruandês, considerada uma peça-chave da política migratória do primeiro-ministro conservador.
“Esta câmara determina que, de acordo com a secção 20 da Lei da Reforma Constitucional e da Governação de 2010, o Governo de Sua Majestade não deve ratificar o Acordo Reino Unido-Ruanda sobre uma Parceria de Asilo até as garantias que ele providencia serem totalmente implementadas”, lê-se na moção, aprovada com 214 votos a favor e 171 contra.
É a primeira vez que a câmara alta do Parlamento de Westminster recorre a este instrumento, criado em 2010 pela lei referida, para dar conta da sua oposição à ratificação de um tratado internacional.
Não se tratando de uma moção vinculativa, porém, o Governo de Sunak não tem de a acolher ou de a cumprir. Mas a sua aprovação, diz a BBC, é demonstrativa do grau de oposição que a proposta de lei do primeiro-ministro tory terá quando for avaliada pelos lordes, a partir da próxima semana.
Ainda que a maioria do Partido Conservador na Câmara dos Comuns seja suficiente, em teoria, para ultrapassar qualquer emenda que a Câmara dos Lordes faça à legislação, o procedimento legislativo irá, seguramente, arrastar-se durante mais tempo do que aquele que Sunak gostaria.
Numa conferência de imprensa na semana passada, depois de ter conseguido suster uma rebelião da facção radical e brexiteer do seu partido, que poderia ter sido muito incómoda para a sua liderança, o chefe do Governo pediu aos lordes para não frustrarem a “vontade da população”.
Na mó de baixo, segundo as sondagens – um estudo recente da YouGov para o Telegraph aponta para a perda de quase 200 deputados conservadores nas próximas eleições –, Sunak não esconde que quer começar a deportar requerentes de asilo para o Ruanda antes do acto eleitoral, que terá de se realizar até Janeiro de 2025, mas que o primeiro-ministro já deu a entender que pretende convocar para a “segunda metade do ano”.
Dez dúvidas
Apresentada pelo trabalhista e antigo procurador-geral para o País de Gales, Inglaterra e Irlanda do Norte Peter Goldsmith, em nome da comissão de Acordos Internacionais da Câmara dos Lordes, a moção aprovada na segunda-feira à noite enumera dez questões sobre o sistema de asilo ruandês que, argumenta, ainda têm de ser respondidas e asseguradas antes da ratificação do tratado.
Assinado em Dezembro do ano passado, em Kigali, o documento compromete-se a resolver os problemas levantados pelo Supremo Tribunal do Reino Unido, que, um mês antes, decidiu que o programa para enviar migrantes para o Ruanda era ilegal.
A mais alta instância judicial britânica identificou “defeitos graves e sistemáticos nos procedimentos e nas instituições” que tratam dos pedidos de asilo no Ruanda e disse haver “motivos substanciais para acreditar que existe um risco real de os pedidos de asilo não serem tratados de forma adequada e que, por isso, os requerentes de asilo ficarão em risco de serem devolvidos, directa ou indirectamente, aos seus países de origem”, onde, sublinhou, poderão ser alvo de perseguição ou detenção.
O tratado define o Ruanda como um “país seguro”; assegura que os migrantes transferidos para aquele território, localizado a mais de seis mil quilómetros do Reino Unido, “não correm o risco de serem devolvidos a um país onde a sua vida e liberdade possam ser ameaçadas”; cria um novo organismo de recurso; e reforça as competências de uma comissão independente que vai monitorizar a implementação do programa, de forma a “garantir o cumprimento das obrigações do tratado, tais como condições de recepção” dos migrantes, o “processamento dos pedidos de asilo e o tratamento e apoio aos indivíduos, incluindo até cinco anos após terem conhecido a decisão final” sobre os seus processos.
Concebido pelo Governo de Boris Johnson, em 2022, o programa do Ruanda já envolveu o pagamento de 240 milhões de libras (mais de 280 milhões de euros) a Kigali e é uma das políticas de Sunak para reduzir o número de travessias de migrantes no canal da Mancha, que, em 2022, atingiu um recorde, com mais de 40 mil entradas.
“Não é aceitável que haja pessoas a viajar de um país perfeitamente seguro, a França, para outro país seguro, o Reino Unido, e que possam ficar aqui. É disso que se trata o plano do Ruanda”, reagiu David Cameron, ministro dos Negócios Estrangeiros no Governo conservador, nesta terça-feira, em resposta à votação na Câmara dos Lordes.