Sozinhos, doentes com demência desaparecem ou saem sem acompanhamento do hospital

Em 2023, a Entidade Reguladora da Saúde recebeu 994 queixas relacionadas com “acompanhamento durante a prestação de cuidados” e no ano anterior recebeu 1018 denúncias.

Foto
Doentes com demência estão a ser obrigados a ficar nas urgências sem acompanhamento Nelson Garrido/Arquivo
Ouça este artigo
00:00
08:32

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Os casos de cuidadores impedidos de acompanhar doentes com demência nos serviços de saúde multiplicam-se, havendo histórias de idosos que desaparecem do sistema ou que saem sozinhos do hospital sendo encontrados, por vizinhos, "a dormir no chão do prédio".

Há 10 anos que a lei garante a todos os utentes o direito a estarem acompanhados nos serviços de saúde, mas este é um diploma que é muitas vezes ignorado.

Em 2023, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) recebeu 994 queixas relacionadas com "acompanhamento durante a prestação de cuidados" e no ano anterior recebeu 1018 denúncias.

Nem todas dizem respeito a doentes com demência, mas "acontecem com alguma frequência e são absolutamente inaceitáveis", disse à Lusa Catarina Alvarez, da Alzheimer Portugal - Associação Portuguesa de Familiares e Amigos dos Doentes de Alzheimer.

Entre as reclamações feitas à ERS está a dos familiares de Jorge (nome fictício), impedidos de acompanhar um idoso de 84 anos às urgências do Hospital Garcia de Orta, em Almada

Numa madrugada de Outubro do ano passado, a mulher ficou à espera na rua até ser aconselhada a ir "para casa descansada", porque os exames iriam "demorar mais de seis horas" e assim que "o paciente tivesse alta contactá-la-iam", lê-se na queixa escrita pela sobrinha.

No entanto, poucas horas depois, por volta das sete da manhã, foi alertada pelos vizinhos que o marido "estava no corredor do prédio a dormir no chão".

Falhas na alta

No caso de Jorge, houve também uma falha nos procedimentos de alta dos doentes. No ano passado, a ERS recebeu 116 queixas relacionadas com pacientes que tiveram alta "sem contacto a acompanhante" ou em que houve "falhas de vigilância e de controlo de saídas", explicou o gabinete de comunicação da ERS.

Mais uma vez, nem todas estas queixas dizem respeito a doentes com demência. Nem todas significam que a pessoa desapareceu, sublinha o gabinete de imprensa da ERS.

Mas, ao entrarem sozinhos nas urgências, "o risco de desaparecimento é bastante elevado assim como o de a pessoa não ser encontrada em tempo útil", alertou Catarina Alvarez. Felizmente, acrescentou, "na maior parte das vezes, o desfecho é positivo, porque a pessoa é encontrada por um familiar ou por alguém que a procura".

Foi o caso de Maria (nome fictício), que "desapareceu do sistema" do Garcia de Orta durante várias horas, deixando a família em pânico. "Incapacitada a nível de audição, mobilidade e fala", Maria também deu entrada nas urgências sozinha, porque a família foi impedida de entrar e aconselhada a ir para casa.

Horas mais tarde, "ninguém sabia da minha mãe", relata a filha na queixa enviada à ERS, na qual revela que uma funcionária lhe disse que a mãe "não estava no sistema": A médica tinha-lhe dado "alta por abandono", por não comparecer à consulta de urgência.

"Como é que querem que uma pessoa que não anda, não ouve, não fala e não tem capacidade de raciocínio consiga perceber e sequer movimentar-se para ir à consulta de urgência?", questiona a filha, criticando também os serviços por não avisarem a família de que a mãe tinha tido alta. "Se não fôssemos nós a ligar para saber dela, ainda hoje lá estava perdida naquele hospital", acusa a filha.

No mês seguinte, tiveram de voltar ao hospital, tendo sido novamente ignorado o direito a ter um acompanhante, apesar de a filha alertar para o facto de a senhora não conseguir explicar o motivo da ida às urgências.

Vantagem para os médicos

A presença do um acompanhante é também "uma vantagem para a equipa clínica, porque às vezes a pessoa tem dificuldades em descrever a sua situação clínica e, portanto, ter um acompanhante é fundamental e necessário", salientou o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, Xavier Barreto.

Exemplo disso foi a recente ida às urgências de Teresa (nome fictício). A senhora com Alzheimer caiu e bateu com a cabeça, tendo perdido a consciência durante alguns minutos. À entrada do hospital, a sobrinha foi impedida de a acompanhar, apesar de ter alertado para a situação clínica da tia e da sua incapacidade de transmitir informações.

Resultado: a carta de alta referia que a doente não tinha queixas ou dores, contou à Lusa a filha, sublinhando que "é normal acontecer sempre que vai sem acompanhante, por não se recordar do motivo que a fez ser transportada às urgências".

Este caso nunca chegou ao conhecimento das autoridades e a família pretende manter o anonimato, até por ser muito provável que tenham de voltar ao mesmo hospital.

Em Setembro, quando Teresa deu entrada nas urgências de uma unidade hospitalar de Coimbra, a sobrinha, que é cuidadora, foi impedida de entrar. A família ficou mais de 48 horas sem informações, apesar dos muitos contactos.

A filha de Teresa diz que só quando a família ameaçou fazer queixa à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) é que a senhora apareceu: "Foi entregue nua, suja, descalça, coberta com uma bata e sentada numa cadeira de rodas", recordou à Lusa.

Nesse dia, a mãe trazia ao colo, num saco de plástico, a sua roupa suja, misturada com o cartão de cidadão. Nesses dois dias, Teresa "não tomou a medicação, não recebeu cuidados de higiene, nem foi levada a uma casa de banho", contou.

Mas há casos que continuam por resolver, como a de Avelina Ferreira, de 73 anos, que desapareceu a 12 de Dezembro de 2023, depois de ter entrado sozinha nas urgências do Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, uma vez que o marido foi impedido de a acompanhar. Esteve sete horas à espera do lado de fora das urgências, até descobrir que Avelina tinha desaparecido.

A família lançou, este mês, uma petição a pedir mecanismos que previnam o desaparecimento de pessoas com demência, que a Alzheimer Portugal já subscreveu. "Também nós fazemos um apelo aos cidadãos para subscreverem a petição, porque esta é uma forma de tornar visível este problema para melhorar a prevenção e resposta", disse a porta-voz da associação, Catarina Alvarez.

Voluntários de fora

Já a Federação Nacional de Voluntariado em Saúde (FNVS) defende que se o acompanhamento que prestavam antes da pandemia, e que não foi reposto, poderia ajudar a impedir situações deste género.

Em Março de 2020, a pandemia de covid-19 afastou os voluntários dos hospitais, que esperavam regressar com o fim das restrições, mas tal ainda não aconteceu.

Na maior parte dos hospitais, os voluntários não podem estar na área do internamento, nem nas urgências, onde antes davam apoio aos doentes mas também aos profissionais, contou à Lusa o presidente da FNVS, Carlos Pinto Correia.

"Os hospitais têm tido alguma relutância em deixar que os voluntários voltem para os internamentos", lamentou Carlos Pinto Correia, explicando que eram quem apoiava os doentes, levando-lhes "revistas, jornais e conversando, porque uma boa parte deles não tem visitas nem de familiares e o voluntário cumpre esse trabalho".

A falta de tempo dos profissionais de saúde era muitas vezes amenizada pelos voluntários, que podiam, com calma, responder às perguntas que os doentes queriam fazer aos profissionais, relatou. "Este trabalho não está a ser feito neste momento. Há algumas excepções, é um facto, mas a maioria não nos tem permitido regressar ao internamento", vincou.

Cabe às comissões de controlo de infecção e resistência aos antimicrobianos autorizar o regresso dos voluntários, mas as equipas "tardam em dar essa autorização e as administrações [hospitalares] socorrem-se disso".

Carlos Pinto Correia disse que a federação já contactou por "variadíssimas vezes" as administrações hospitalares, mas os processos continuam parados, lamentando ainda não ter recebido nenhuma resposta do Ministério da Saúde nem da Direcção-Geral de Saúde aos pedidos para que os voluntários pudessem alargar a sua actividade.

Contactada pela Lusa, a Direcção Executiva do SNS garantiu que não emitiu nenhuma orientação no sentido de impedir a entrada de voluntários no internamento dos hospitais.

Neste momento, a acção dos voluntários centra-se na área da consulta externa, onde não dependem de ninguém, a não ser das regras de funcionamento dos hospitais.

Ali, têm autonomia para falar com os doentes, oferecer uma bebida quente, mas também ajudá-los a utilizar as tecnologias para tirar senhas para as consultas e até encaminhá-los pelo "labirinto do hospital".

Carlos Pinto Correia acredita que os voluntários são essenciais para ajudar os mais fragilizados, em especial os doentes mais idosos ou com demências, que podem acabar por se perder ou mesmo sair sozinhos dos serviços de saúde. "Podíamos ajudar se lá estivéssemos, conversando com os doentes, porque se eles saem é porque se sentem abandonados. Pensam: não me atendem, não me falam, não me respondem. Portanto, não estou aqui a fazer nada, vou-me embora", salientou.

De um direito com uma década que já motivou milhares de queixas, a ERS avançou com dois processos de contra-ordenarão: Um caso ocorreu em 2017 no Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, e outro em 2018 no Centro Hospitalar Universitário do Algarve. Ambas as unidades de saúde foram multadas com uma coima de 2500 euros.