Disfunções da ciência e do ensino superior em nove pontos

A investigação é uma das principais atividades dos docentes universitários. Porém, as universidades não conseguem disponibilizar qualquer verba para que os docentes se possam dedicar a esta tarefa.

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A vida política em Portugal tem andado animada nos últimos meses, mas há um setor da sociedade do qual é raro ouvir-se falar: o ensino superior público (ESP). Na verdade, governos entram e governos saem sem que o cidadão comum efetivamente se aperceba de qualquer reclamação, problema ou discussão oriunda da comunidade universitária e politécnica. Recentemente, tem-se ouvido falar da escassez de residências universitárias, mas esta questão surge principalmente no contexto do grave problema da (falta de) habitação em Portugal.

Entretanto, como iremos comprovar daqui a algumas semanas, todos os partidos que se apresentam a eleições legislativas em março irão escrever eloquentes parágrafos sobre a importância do ESP para o desenvolvimento e futuro do país e a relevância da formação inicial e ao longo da vida dos cidadãos, como motor de crescimento económico.

Ao associarmos estes dois aspetos – a quase ausência de revindicações relativas ao ESP no espaço público e a retórica dos partidos acerca da importância do ESP – poderíamos ser induzidos a pensar que tudo está bem. Vejamos o que se passa em nove pontos.

  1. Quanto falamos de ESP, estamos a referir-nos a uma rede de 36 universidades e institutos politécnicos distribuídos por todo o país e que apresentam realidades e desafios muito distintos. No ano em que se celebram os 50 anos do 25 de abril, há que reconhecer que, neste meio século, houve um notável progresso do ESP que passou dos 77.500 estudantes em 1978 para quase 360 mil estudantes em 2023 (dados da Pordata).
    Não irei referir o “elefante na sala” relacionado com o nível de competências e de motivação evidenciadas por parte dos atuais estudantes e que se manifestam nas preocupantes taxas de abandono e insucesso escolares; irei antes focar-me no funcionamento das universidades.
  2. Talvez seja necessário explicar que a atividade profissional dos professores universitários se centra em cinco tipos de atividades: assegurar as aulas das diversas disciplinas (pomposamente chamadas, desde há alguns anos, unidades curriculares); orientar alunos que desenvolvem as suas teses de mestrado e de doutoramento; realizar investigação científica que se espera seja de nível internacional; executar ações de interação com a sociedade que incluem a divulgação e promoção da cultura científica; assegurar a gestão da enorme máquina administrativa e burocrática que são hoje as instituições do ESP, que inclui reitorias, direções de faculdades, departamentos e centros de investigação e a coordenação de inúmeros conselhos e comissões.
  3. Os docentes universitários de carreira são funcionários públicos, mas, pasme-se, a totalidade dos seus salários não é paga integralmente pelo Orçamento do Estado. Na verdade, a verba do Orçamento do Estado que é anualmente transferida para as universidades portuguesas é tão reduzida que não chega sequer para cobrir as despesas com salários.
    Se as escolas básicas e secundárias, os hospitais e centros de saúde ou os tribunais não recebessem do Ministério das Finanças o montante total necessário para pagar salários, a falta de atenção pública ao assunto seria a mesma?
  4. Há então uma pergunta que se impõe: como conseguem as universidades pagar a parcela dos salários que é deixada a descoberto pelo Orçamento do Estado e, já agora, as despesas correntes de água, eletricidade, gás, segurança, limpeza, manutenção dos edifícios, etc.? Com o recurso ao que se designam por “verbas próprias”, isto é, montantes que são angariados por cada universidade e que incluem desde as propinas pagas pelos estudantes (sim, o salários dos professores das universidades e encargos gerais de funcionamento são parcialmente pagos pelas famílias dos estudantes, apesar destas já pagarem impostos), aos emolumentos que são cobrados aos estudantes nas matrículas e inscrições e na passagem de qualquer tipo de certidão ou diploma, passando pela prestação de serviços especializados a empresas e outras entidades.
  5. Como foi referido, a investigação científica é uma das principais atividades dos docentes universitários. Porém, as universidades não conseguem disponibilizar qualquer verba para que os docentes se possam dedicar a esta tarefa à qual estão obrigados pelo seu estatuto (lembre-se que o que as universidades recebem do Estado para o seu funcionamento não chega sequer para pagar salários...).
    Resta aos docentes idealizar projetos de investigação, preparar candidaturas e concorrer aos parcos fundos disponibilizados pelo Estado através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).
    Como o orçamento dos muitos projetos a concurso é muito superior à verba disponível, o sucesso das candidaturas é sempre muito baixo. Segundo a FCT, no último concurso a projetos de 2022, só 15 em cada 100 candidatos recebeu financiamento (633 projetos aprovados dos 4093 que concorreram, que correspondeu a um investimento de 75,6 milhões de euros).
    Apesar de, habitualmente, a esmagadora maioria dos projetos a concurso ser considerada de elevada qualidade, a reduzida verba disponível não é suficiente para que as universidades possam realizar a investigação científica a que se propõem. Resta então a alternativa de tentar obter financiamento junto da União Europeia, também através de concursos extremamente competitivos, ou tentar captar financiamento de empresas, tarefa que se revela difícil em Portugal e que, quando bem-sucedida, apenas se limita a áreas científicas muito limitadas.
  6. Não deixa de ser curioso constatar que o Estado não consegue assegurar o normal funcionamento do seu sistema científico devido a dificuldades financeiras, mas, o mesmo Estado, gasta, desde 2018, milhões de euros em universidades privadas norte-americanas para que um pequeno número de cientistas portugueses possa ter parcerias com estas instituições.
    Conforme publicado recentemente em Diário da República, relativamente apenas a 2024, vamos pagar 3,8 milhões de euros à Universidade de Carnegie Mellon, 4,5 milhões ao Instituto de Tecnologia do Massachusetts e 3,4 milhões à Universidade do Texas.
    Só o orçamento anual da Universidade de Carnegie Mellon é superior ao total do Orçamento do Estado que é transferido anualmente para todas as universidades e institutos politécnicos do país!
    Esta mais que discutível opção do Estado em gastar dinheiro proveniente dos contribuintes portugueses a financiar instituições privadas de investigação não se restringe aos exemplos referidos. Na lista dos projetos aprovados pela FCT em 2022, já referida, encontramos instituições privadas que, certamente, não necessitam de investimento público para funcionarem, como é o caso da Fundação Calouste Gulbenkian ou da Fundação Champalimaud. Devo esclarecer que nada tenho contra a existência de instituições de ensino e investigação privadas, apenas não entendo como o Estado se dispõe a financiá-las quando o setor público está tão carente de financiamento.
  7. As universidades portuguesas pressionam assim os seus docentes a concorrer a projetos, não só para conseguir captar financiamento que suporte a investigação científica, mas também porque uma parte deste financiamento vai contribuir para as verbas próprias das instituições.
    Embora os valores possam variar um pouco entre as universidades, em média cerca de 25% do montante conseguido pelos docentes para fazer ciência é retido pela administração das universidades para fazer face às despesas de funcionamento que não são cobertas pelo Orçamento do Estado. Isto significa que cerca de 1/4 das verbas que deveriam ser usadas integralmente para fazer investigação são, afinal, gastas a assegurar o funcionamento corrente das instituições.
  8. Não referi ainda um aspeto central no funcionamento das universidades que, esporadicamente, tem vindo a público: o caráter precário do vínculo laboral de centenas de investigadores que desenvolvem a sua atividade científica nas universidades, não raras vezes há décadas. O aumento do número de doutorados no país (nos últimos 20 anos as universidades portuguesas terão formado cerca de 35 mil novos doutorados), em conjugação com a impossibilidade das instituições do ESP ampliarem e renovarem o seu corpo docente pelas dificuldades de financiamento acima referidas, levou a que o Estado tenha criado nas últimas décadas um sistema perverso de bolsas de pós-doutoramento e, mais recentemente, de contratos temporários de trabalho que, mais não fizeram, do que colocar a vida profissional e pessoal de centenas de pessoas num limbo e numa incerteza constantes.
  9. Para tentar resolver a situação de alguns dos investigadores que estão em situação precária, a FCT saiu-se recentemente com uma iniciativa à qual atribuiu uma designação em inglês para parecer mais sofisticada: FCT-Tenure!
    Nada mais é do que um programa, já aberto, em que essa instituição comparticipa o pagamento de salários de docentes e investigadores de carreira nas universidades. Ou seja, as universidades abrem concursos públicos e aqueles que conseguirem ficar em primeiro lugar vêm parte do seu salário assegurado pela FCT, até um máximo de seis anos, desde que tenham já usufruído de um contrato temporário ou bolsa numa instituição nacional.
    Após os seis anos, espera-se que as universidades consigam pagar a totalidade dos seus salários, o que se afigura provável, uma vez que, brevemente, haverá centenas de aposentações de docentes universitários. Há, todavia, um detalhe que pode abrir uma caixa de Pandora: o pagamento do salário de funcionários públicos de carreira por outras entidades, inclusive privadas!
    Na verdade, o FCT-Tenure prevê que as universidades possam angariar a contribuição financeira de “empresas, museus, comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR), câmaras municipais, ONG [organizações não governamentais], ramos ou entidades das forças armadas, etc.” para pagar parte dos salários de docentes e investigadores de carreira.
    A decisão política, tomada por diversos governos ao longo das últimas duas décadas, de sistemática e deliberadamente subfinanciar o ESP, leva ao aparecimento de soluções criativas que considero perigosas. E se um dia o salário de médicos e enfermeiros do SNS for pago por empresas farmacêuticas, ou o de militares for pago por empresas de fabrico de armamento?

O texto já vai longo e não terei oportunidade de abordar outros problemas sérios do ESP, como o envelhecimento do corpo docente das universidades e institutos politécnicos, a ausência de programas de financiamento para a modernização do parque de equipamentos científicos de grande envergadura, o adiantado estado de degradação de alguns edifícios – onde não é raro encontrar baldes no chão a recolher água que pinga dos tetos em dias de precipitação mais intensa –, a burocracia asfixiante que não está preparada para responder à dinâmica própria da investigação científica e que obstrui a rotina diária de trabalho, já para não referir os elevados níveis de stress e de esgotamento dos profissionais que trabalham nas instituições do ESP.

Portanto, não está tudo bem no ensino superior e na ciência em Portugal. O silêncio e a passividade da comunidade académica são enganadores; é bom que os partidos políticos saibam desta situação, agora que se preparam para apresentar soluções concretas a serem votadas pelos cidadãos em março próximo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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