Limpeza de ficheiros no SNS: “A questão de fundo é que não temos uma base de dados credível”

Ex-coordenador do grupo para a reforma dos cuidados de saúde primários lamenta “incapacidade” de criar uma base de dados no SNS que “cruze informação”.

Foto
A base de dados do SNS chegou a ter 12 milhões de utentes inscritos Rui Gaudêncio (arquivo)
Ouça este artigo
00:00
03:12

A actualização do Registo Nacional de Utentes (RNU) e dos ficheiros dos centros de saúde em curso “não vai resolver o problema de fundo”, avisa João Rodrigues, médico que coordenou um grupo de trabalho nomeado para preparar a reforma dos cuidados de saúde primários, em 2019.

“Temos mais inscritos [no RNU] do que residentes em Portugal continental, de facto. Mas a questão de fundo prende-se com a incapacidade de se criar uma base de dados [na saúde] como tem as finanças, por exemplo. Se isto não for resolvido, vamos andar sempre com este problema. São medidas paliativas para um problema estrutural”, sustenta.

“Espero que o novo Governo invista numa base de dados que cruze informação. Não entendo porque não temos uma base de dados credível, nesta era da informática”, lamenta, lembrando que há muito dinheiro no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para a digitalização na saúde.

Quanto ao problema que se colocou em relação aos emigrantes, João Rodrigues considera que “não está aqui em causa uma questão política mas de cidadania”. E pergunta: “Um cidadão português que não reside em Portugal e faz descontos noutro país deve ou ou não ter direito a médico de família cá? Creio que não, mas tem direito a ter acesso ao SNS como todos os residentes têm. O que está a ser dito agora é um nim. No entanto, esta questão devia ser discutida, primeiro, e só depois legislada”.

Segundo o despacho que definiu as novas regras de inscrição no RNU e nos ficheiros dos centros de saúde, para alguém ter direito a médico de família cá tem que ter residência permanente. “Mas isto também não pode ser interpretado preto no branco. Temos portugueses que só trabalham três meses fora, por exemplo. Estas excepções têm que ser regulamentadas. O despacho tem os vícios do próprio sistema informático. É mal feito e é precário. Aliás, o trabalho que está a ser realizado para validar os dados é a prova de que não temos uma base de dados robusta”.

Henrique Martins, ex-presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, a entidade que gere o Registo Nacional de Utentes, assume que “há muitas inconsistências” na base de dados mas lembra que a situação já foi bem pior. “Chegamos a ter 12 milhões de inscritos...”. Nessa altura, foram retirados muitos duplicados e pessoas que já tinham morrido.

“Agora, na realidade não sabemos quem reside cá e tem registo activo actualmente. O Ministério da Saúde não tem maneira de saber se a pessoa está a viver em Portugal ou fora. Só o Ministério das Finanças tem essa informação quando a pessoa a declara para efeitos fiscais. Há muitas pessoas que mudam a morada nas finanças mas não no centro de saúde. E o RNU pode mudar a morada mas não pode alterar o software dos cuidados de saúde primários”.

Esta não é a primeira vez que uma limpeza de ficheiros desencadeia polémica. Em 2012, num governo PSD/CDS, o Ministério da Saúde também emitiu um despacho ordenando a retirada, das listas dos médicos de família, de todos os cidadãos que não frequentavam ou contactavam os centros de saúde há mais de três anos. Dois anos depois, o Tribunal de Contas pôs em causa a metodologia e o despacho foi alterado.

Sugerir correcção
Comentar