A crise de Gaza

É tempo de encontrar uma solução para o povo palestiniano e de os líderes mundiais assumirem as suas responsabilidades.

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A 19 de abril de 1506 desencadeou-se uma chacina de judeus em Lisboa. Foi na Igreja de S. Domingos que tudo começou, estimando-se que o acontecimento tenha dizimado cerca de 4000 pessoas. Este foi um dos inúmeros pogroms que atingiram o povo judaico ao longo da sua história, devendo ser recordado — todos os dias — o martírio da shoah. A 7 de outubro de 2023, o povo judaico reviveu dramas passados.

O criminoso ataque do Hamas, bem como a tomada e manutenção de reféns, são totalmente inadmissíveis e justificam uma resposta forte. Mas a questão que hoje se coloca prende-se, porém, com a legitimidade da reação posta em execução.

O tema mobiliza um passado traumático. Envolve um Estado criado com o propósito de proteger um povo ultrajado, perseguido e massacrado durante séculos e que, por isso, desenvolveu, justamente, mecanismos de proteção excecionais.

Todavia, por estas mesmas razões históricas — importa ver e rever o lancinante documentário de Claude Lanzmann —, seria de esperar que o Governo de Israel se pautasse sempre por elevados, rigorosos e irrepreensíveis critérios de legalidade, adequação e proporcionalidade. Não nos esqueçamos que Israel é uma democracia liberal que deve agir a coberto do direito internacional.

Contudo, o governo de extrema-direita e de fanáticos religiosos que impera em Israel tem corroído a autoridade moral que a história lhe conferiu. Desde logo, e como nota mais saliente, o que é surpreendente e avassalador é o à-vontade com que alguns dirigentes israelitas se dirigem aos palestinianos como seres de categoria inferior, desumanizando-os, e, assim, quebrando quaisquer laços de empatia com essa população. Assim se compreende a indiferença perante a morte de civis, em especial de crianças. A tese de que a morte de civis é exclusivamente imputável ao Hamas não procede à luz dos factos conhecidos.

Será legítimo, perante o princípio da indiscutível igualdade de valor de todas as vidas humanas, o juízo moral que autorize a morte desproporcional de civis como meio necessário para atingir os objetivos militares estabelecidos? Será ilibatória ou excludente de culpa de danos causados a circunstância de se emitir um aviso dando notícia prévia de bombardeamentos?

O não acatamento de uma ordem de evacuação é fundamento bastante para a sujeição de alguém à morte? A reação do governo israelita ultrapassou a legítima defesa, atingindo, em muitos casos, uma índole punitiva da população. Por mais que se repita o chavão de que Israel tem o direito de se defender — o que é evidente —, o certo é que o que está em curso nada tem a ver com o exercício da legítima defesa.

E sobram dúvidas sobre a eficácia da missão, alegadamente destinada a extinguir o Hamas. O que parece óbvio é que a natureza da ação levada a cabo contra os civis palestinianos será um poderoso fator de recrutamento contra Israel, contribuindo para prolongar uma guerra sem fim à vista. A neutralização do Hamas, necessária tanto para o povo israelita como para o povo palestiniano, só se conseguirá com o apoio de países vizinhos e dos palestinianos que se opõem a esse movimento.

Mas as bases para essa solução política estão a ser destruídas. É extraordinário verificar como, tão rapidamente, o governo de Israel desbaratou o capital de apoio granjeado a 7 de outubro. Admitindo ser difícil organizar uma resposta perfeita, a verdade é que os fatos demonstram que da legítima defesa se passou para algo diferente, e muito mais amplo, e que, de supetão, a gestão politica e militar da barbárie de 7 de outubro transformou as vítimas iniciais em agentes de violação de regras humanitárias internacionais.

É, destarte, inaceitável a passividade da comunidade internacional e a incapacidade de resgatar do horror uma população encurralada entre a opressão e manipulação do Hamas e a brutalidade da resposta israelita. A posição em que se encontram os palestinianos é deveras singular. Um povo abandonado, sem tutela, sem o manto de um Estado de direito, subjugado e instrumentalizado por uma organização terrorista, sujeito a doses maciças de propaganda e de lavagem cerebral em prol do ódio e, agora, bombardeado e expulso da sua terra. É tempo, por isso, de encontrar uma solução para o povo palestiniano e de os líderes mundiais assumirem as suas responsabilidades.

António Guterres tem indicado o caminho certo a seguir — o respeito pela Carta das Nações Unidas e o repúdio dos tempos sombrios da lei do mais forte — e, não obstante os ataques que lhe têm sido dirigidos, mantêm-se firme e sereno. É o que necessitamos nesta espiral de loucura.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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