Santiago, uma surpresa no Chile

A leitora Goreti Catorze não tinha grande vontade de conhecer a capital chilena, mas foi, para não ser desmancha-prazeres. “Apesar de tudo, sentia curiosidade em contemplar os Andes em pano de fundo.”

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Santiago do Chile MARIA GORETI CATORZE
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Raramente chegamos a uma cidade sem referências prévias. Há a literatura, a poesia, a política, a arquitectura, a arte, a história...Em suma, há sempre qualquer coisa que nos prende a imaginação. Santiago (Chile) não é excepção. Nunca tive nenhum interesse especial em conhecer capitais latino-americanas. A história destes sítios perturba-me: está carregada de sofrimento. Houve a colonização com o massacre de nativos, as ditaduras ferozes após a independência, as eternas desigualdades sociais. Mas os meus amigos insistiram em ir a Santiago de passagem para Buenos Aires. Foi assim que acedi, para não ser desmancha-prazeres. A contragosto, mas fui. Apesar de tudo, sentia curiosidade em contemplar os Andes em pano de fundo porque sou uma apreciadora de cidades continentais.

No aeroporto esperava-nos uma carrinha, espécie de táxi colectivo, que levava os passageiros até aos seus destinos. Como estávamos alojados num hotel do centro da cidade, entre o Cerro Santa Lúcia e o Teatro Municipal, fomos os últimos a ser largados. Isso teve a vantagem de poder ver os bairros e as habitações dos restantes ocupantes da carrinha, todos residentes no país. O desconhecido e o diferente são sempre objecto de grande curiosidade. Viviam na periferia, em prédios rodeados de gradeamentos e portões. Não gradeamentos elegantes, mas cercas tipo jaula de jardim zoológico, uma das marcas da América do Sul.

No dia seguinte era domingo. Fui até aos jardins do Cerro de Santa Lúcia, onde as famílias se passeavam numa calma festiva, um hábito universal nos domingos de sol.

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Na ânsia de sair da cidade consegui lugar numa excursão de brasileiros (turistas habituais dos países vizinhos) para dar um passeio nos Andes. Lá fui temerosa do frio, porque me advertiram para ir encasacada. Só quando lá cheguei percebi que, apesar da neve, a temperatura era primaveril. O que para um europeu é ameno para os brasileiros é frio de morrer...

Sair da cidade grande em direcção às montanhas foi um percurso agradável, havia eleições autárquicas e pude entreter-me a observar pela janela o movimento das pessoas na proximidade das mesas de voto andinas.

No dia seguinte caminhei até ao sítio mais emblemático de Santiago, o palácio de La Moneda. Não foge à regra, tem um gradeamento enorme em volta. Creio que toda a gente ouviu falar nele, porque foi lá que morreu Salvador Allende no dia 11 de Setembro de 1973, deposto (e assassinado) pelos militares que tomaram o poder pela força. Lembrei-me desta viagem exactamente por causa destas efemérides (Pablo Neruda viria a falecer cerca de uma semana depois). A Joan Jara, mulher de Víctor Jara​, faleceu há poucas semanas, não sem antes ter encontrado o assassino do marido que, como tantos chilenos, foi barbaramente torturado e assassinado no estádio nacional de Santiago, dias após o golpe.

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Pedi a um casal com cara de mapuches para me tirar uma foto em frente do portão. Dirigi-me à rapariga, mas ela apontou timidamente para o rapaz que estava ao seu lado. Por momentos tinha-me esquecido desta submissão das mulheres aos homens tão típica da América Latina. O rapaz lá me tirou a fotografia com a falta de jeito de quem não está familiarizado com a técnica.

Acabei por me habituar à rotina de Santiago, sobretudo à amável vendedora de sumo de laranja da rua onde estive alojada por escassos dias. A atitude humilde e cativante dos mapuches contrasta com a arrogância dos descendentes dos espanhóis. Quando deixei Santiago, numa tarde soalheira de Novembro em direcção a Buenos Aires, chuvoso e escuro, apeteceu-me voltar para trás, não fosse eu uma portuguesa com vocação para a saudade.

P.S. — Sobre o Chile e Santiago, é obrigatório ver os documentários do Patricio Guzmán e o filme Santiago, Itália, de Nanni Moretti. Aprendi muito com eles.

Maria Goreti Catorze

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