O que há num nome?
À Museus e Monumentos de Portugal cabe, antes de mais e depois de tudo, assumir um desígnio nacional: renovar o frágil sentido de pertença do país ao seu próprio património.
“O que há num nome?” é uma das mais célebres réplicas do teatro de Shakespeare. Julieta tenta, em vão, persuadir-se de que os nomes não importam, não tanto quanto se pensa.
A entidade que, a partir do primeiro dia deste ano, gere quase quatro dezenas de museus, monumentos e palácios do país, do nordeste transmontano ao promontório de Sagres, chama-se Museus e Monumentos de Portugal. A esta designação soma-se a sigla E.P.E., Entidade Pública Empresarial.
Com três veneráveis substantivos – Museus, Monumentos, Portugal –, este nome evoca a grande História do país; a nossa memória colectiva, de que nos tornámos prodigamente amnésicos; um património histórico-cultural cujo valor nenhuma calculadora pode estimar; todo o passado de uma nação cuja irresistível tentação de existir parece desdenhar da mais elementar probabilidade histórica.
Esta é uma perspectiva enfática, eivada de gravitas. Mas no nome da nova empresa vivem também duas levíssimas, despretensiosas partículas, de que precisamos de extrair consequências: um “e” e um “de”. A conjunção “e” excede a lógica cumulativa, a mera adição – 38 museus, monumentos e palácios, 21 vilas e cidades, 1007 trabalhadores –, oferecendo-se como um desejo de ligação. Ligar é reunir, relacionar; ligar é activar; ligar é dar atenção e importância.
É todo um programa para a Museus e Monumentos de Portugal: cabe-nos pôr em relação os museus, monumentos e palácios, o Laboratório José de Figueiredo, a Coleção de Arte Contemporânea do Estado, fomentando a colaboração, a partilha de conhecimento, o trabalho em rede, a itinerância. Cada museu e cada monumento é um astro com luz própria; devemos ser capazes de ver a singular constelação que perfazem – juntos. Este “e” que liga os museus, os monumentos e os palácios de Portugal é o mesmo que liga a Rede Portuguesa de Museus, à qual nos cabe atribuir um novo fôlego estratégico, bem como os grupos de amigos, os mecenas, as universidades, outras instituições culturais e projectos artísticos.
Por seu turno, a preposição “de” sinaliza simultaneamente a origem, a matéria e a pertença dos monumentos, das colecções museológicas, de todos os recursos que integram agora o universo da nova empresa pública. Portugal é o proprietário. Portugal é também, em larga medida, o assunto dos nossos museus e monumentos: estes são fundamento inalienável de memória colectiva e identidade nacional. À Museus e Monumentos de Portugal cabe, antes de mais e depois de tudo, assumir um desígnio nacional: renovar o frágil sentido de pertença do país ao seu próprio património, garantindo que os portugueses se relacionam com os seus museus e monumentos não apenas como um bem que possuem e guardam, mas também como uma realidade de que usufruem e na qual participam.
Do sangue da Medusa que tudo convertia em pedra nasceu Pégaso, o cavalo alado, imponderável. No nosso caso, peso e leveza exigem-se mutuamente. Cumpre-nos zelar pelo peso da matéria e apreciar a gravidade histórico-cultural de todo o património – monumentos, obras de arte, bens culturais – cuja aquisição, conservação, restauro, inventariação, classificação e estudo lhe cabem estatutariamente. Introduzir leveza não significa abrir portas à disneylandização do património cultural, mas profissionalizar a sua gestão, modernizando sistemas e desmaterializando processos, e estimular a inovação, as boas práticas e a capacidade de iniciativa dentro da organização. Um verso de Paul Celan sintetiza a nossa ideia: “Ficar mais pesado. Ser mais leve.”
Não vou fazer de conta que da designação não consta um elemento esfíngico: a sigla E.P.E., Entidade Pública Empresarial. Sei que a é-pê-é-ização da gestão do património e da museologia nacional suscita, em alguns quadrantes, esperanças salvíficas; noutros, gera uma funda suspeita.
A fórmula E.P.E. revela-se a terapêutica disponível mais adequada, mas não é a panaceia universal, o remédio instantâneo para todas as patologias. A Museus e Monumentos de Portugal, E.P.E. não está sujeita à Lei-Quadro do Trabalho em Funções Públicas; no entanto, a contratação de novos trabalhadores carece de aprovação das tutelas sectorial e financeira do Estado. A empresa está também sujeita a todas as regras da contratação pública, cujo escrupuloso cumprimento constitui, em si mesmo, um desafio, considerando a dimensão da organização, bem como a diversidade de escalas e a dispersão territorial de museus e monumentos.
Não nos deslumbramos pelo brilho dos tesouros ou pela imponência dos monumentos: reconhecemos que é árduo o que temos entre mãos e que muitas decisões dilemáticas teremos de tomar, mas este é um bom combate, o combate que vale a pena ser travado, pacífica e construtivamente, neste momento das nossas vidas, neste momento crucial da vida dos museus e monumentos de Portugal.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico