Um cristão da Palestina em Lisboa: “As pessoas estão sem esperança”
Nicolas vende artesanato de Belém no Chiado. Sem turismo, a cidade conhecida como o local onde nasceu Cristo enfrenta ainda mais dificuldades. “Esta guerra fez-nos voltar dez anos atrás”, diz.
Entre o brilho das luzes, as esplanadas, o vaivém de tuk-tuks ou os truques dos homens-estátua, passa despercebida a porta do número 10 da Rua Anchieta, ao Chiado. Entra quem sabe ou o turista curioso para ver que “artesanato de Belém” é esse que aparece anunciado num cartaz verde no meio da calçada.
Dispostas em duas mesas corridas de um lado e de outro estão centenas de figuras em madeira: presépios, santos, enfeites para a árvore de Natal, terços, porta-chaves. “Estes trabalhos são feitos por várias famílias cristãs de Belém”, explica Nicolas, o vendedor, atarefado a pôr etiquetas nos produtos que conta vender na sua estada em Lisboa.
Há já vários anos, não sabe precisar quantos, que por alturas do Natal ele enche a bagagem com artesanato da sua cidade e ruma à capital portuguesa para se instalar nos fundos da Basílica dos Mártires, onde vende as peças que ajudam a compor o sustento de muitos. “É como um grão, serve para dar alguma esperança.”
Belém, na Cisjordânia, é um local sagrado para os cristãos, por ter sido ali que Jesus nasceu. Este ano, devido à guerra em Gaza, a reduzida comunidade cristã que subsiste na cidade não poderá celebrar a festa que precisamente assinala esse acontecimento: o Natal. Os patriarcas e líderes das igrejas cristãs da Palestina pediram às suas congregações que se abstivessem “de quaisquer actividades festivas desnecessárias”, tendo em conta que este é um tempo “de tristeza e dor”. As atenções, disseram em comunicado emitido em meados de Novembro, devem estar concentradas “nos irmãos e irmãs afectados por esta guerra e pelas suas consequências”.
Nicolas, 40 anos, que habitualmente é guia turístico, viu-se de repente sem trabalho. Belém é um ponto de paragem incontornável para qualquer peregrinação à Terra Santa, mas o eclodir da guerra trouxe “uma vaga de cancelamentos” e “agora não há turismo”, o que torna mais difícil um contexto já de si delicado. “Belém sem peregrinos é como um peixe sem água”, ilustra ele, recorrendo ainda a uma analogia: “É como Fátima. Os peregrinos são o que dá de comer à cidade.”
Cuidadoso nas palavras que escolhe usar, Nicolas explica que o último ano e meio serviu para começar a recuperar dos efeitos nefastos da pandemia. “Quando veio a covid-19, as pessoas tiveram de vender o que tinham, endividaram-se para pagar as contas”, relata. “Esta guerra fez-nos voltar dez anos atrás. As pessoas estão sem esperança.”
Das “consequências” da guerra a que se referiam os líderes das igrejas cristãs pode Nicolas dar exemplos. “Pobreza, ódio, inflação”, enumera. Falando apenas das coisas terrenas, sublinha que “os bens essenciais aumentaram todos de preço” e que “um dos grandes problemas é a falta de água”.
Belém, a escassos dez quilómetros de Jerusalém, vive há mais de 20 anos praticamente cercada pela barreira que Israel mandou construir em redor da Cisjordânia, e que naquela zona assume a forma de um muro alto e espesso – uma separação física e simbólica do restante território palestiniano a que é impossível fugir na vida do dia-a-dia.
São todas estas circunstâncias que levam muitos habitantes a querer emigrar, em particular os cristãos, que há muito deixaram de ser a maioria da população e que se sentem apanhados no meio de uma guerra que não lhes diz respeito. “Muitos procuram os Estados Unidos, o Canadá ou a Austrália”, diz Nicolas.
Para ele, chegar a Lisboa é todos os anos uma aventura. Os palestinianos só podem sair da Cisjordânia para o estrangeiro através da fronteira de Allenby, com a Jordânia, e o trajecto de Belém até lá envolve parar em vários checkpoints do Exército israelita. Atravessado o rio Jordão, prossegue até Amã, onde finalmente embarca na viagem aérea que o trará até à outra ponta do Mediterrâneo.
E porquê Lisboa? “Aí por 2008, 2009, começaram a ir muitos brasileiros a Belém. Eu gostei da língua e comecei a aprender, a ver filmes”, conta Nicolas, num português onde surgem, por vezes, palavras espanholas e expressões típicas do outro lado do Atlântico. A partir daí passou a também trabalhar com grupos excursionistas portugueses e foi então que tomou contacto com alguns padres de Lisboa. “Porque não levas estas coisas para vender nas igrejas?”, lançaram-lhe a dada altura.
E Nicolas veio, e tem vindo. “Estou muito grato por ser acolhido mais uma vez em Portugal, que é a minha segunda casa. Sinto-me cá seguro e bem acolhido, mas o meu coração está em Belém.” Lá vivem também os seus pais e os seus dois irmãos.
Numa época tradicionalmente dada a balanços e desejos, o único anseio de Nicolas é o de que haja paz. “Que o povo se entenda e que haja liberdade, direitos e justiça. Como disse o Papa Francisco, que haja pontes e não muros.”