Perus vivos e brinquedos baratos - assim eram os mercados de Natal de antigamente em Lisboa

Mercados de Natal como conhecemos hoje são eventos recentes em Portugal. Há umas décadas, na época natalícia, no centro de Lisboa, havia feiras de perus e bancas com brinquedos.

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Mercado de Natal de Alvalade já se realizou nove vezes Nuno Ferreira Santos
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Uma das bancas é de churros e farturas Nuno Ferreira Santos
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Também há queijos e enchidos Nuno Ferreira Santos
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Helena Dordio e o filho, José Silvestre, vêm habitualmente a este mercado Nuno Ferreira Santos
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A Casa do Pai Natal é uma das atracções do mercado de Natal Nuno Ferreira Santos
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Muitos dos frequentadores da feira são moradores de Alvalade Nuno Ferreira Santos
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Em frente a uma das casinhas, José Silvestre delicia-se a beber chocolate quente. “Fazemos um brinde?” – pergunta-lhe a mãe, Helena Dordio. José sorri-lhe e lá fazem o brinde. É final de tarde e vieram dar uma voltinha ao Mercado de Natal de Alvalade. “Saí mais cedo do trabalho, fui buscar o José à escola e viemos passear”, conta Helena Dordio, que mora perto do mercado.

Já vai sendo um hábito vir com a família à Avenida da Igreja por estes dias. “Compro muitos presentes de Natal aqui”, confidencia Helena Dordio. Vem a este mercado de rua desde os seus primeiros anos e tem assistido ao seu crescimento: “Antigamente, eram menos barraquinhas e ainda cheguei a ir quando era no adro da igreja.” É a ver passar pessoas para cima e para baixo na avenida que diz não ter dúvidas: “O mercado dá uma dinâmica espectacular ao bairro.”

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Helena Dordio e o filho, José Silvestre, vieram beber um chocolate quente ao mercado de Natal Nuno Ferreira Santos

Hoje até foi o José que pediu para vir. Também ele já vai estando acostumado a este mercado. “Vim ver os queijos e muitas outras coisas”, diz-nos o José, de dez anos. Mas ainda falta uma paragem: a casa do Pai Natal. É para lá que vai agora, já saciado com o chocolate quente. “Vou pedir uma prenda”, informa-nos, determinado, e de sorriso na cara.

É lá que está a família Carvalho. Moram perto do mercado e vieram comprar algumas prendinhas. E, claro, Dinis e Carolina tiveram de parar na casa do Pai Natal. “Querem ir ver o Pai Natal?”, pergunta-lhes a mãe, Marta Carvalho. Dinis, de dois anos, entra a medo, mas lá se senta ao lado do Pai Natal. Carolina, de cinco anos, vai atrás.

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Marta Carvalho e a família moram em Alvalade e gostam de vir passear ao mercado de Natal Nuno Ferreira Santos

Há três anos que a família vive em Alvalade e também se foi tornando um hábito vir ao mercado de Natal. Antes, viviam perto do Campo Pequeno, e costumavam ir ao mercado que aí se faz. “Aproveitamos esta altura para ir aos mercados de Natal. Para nós, já é uma tradição”, assume Marta Carvalho.

Para Isabel Lopes, também se tornou uma tradição nos últimos anos. Vive em Alvalade e vem aqui desde que o mercado existe. Esteve a cantar num coro, que animou o mercado, e agora aproveitou para comprar farturas. “Gosto de vir ver o artesanato e já é hábito vir comprar farturas”, conta-nos, já com um saco delas na mão. Mora em Lisboa há 60 anos, mas a sua memória só guarda recordações deste mercado dedicado ao Natal na capital. Agora, neste final de tarde, ao som de músicas de Natal e na companhia das iluminações da avenida, volta para casa mais animada.

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Isabel Lopes gosta de vir comprar farturas e ver o artesanato ao mercado de Natal Nuno Ferreira Santos

Esta é a nona vez que se realiza o Mercado de Natal de Alvalade, que é organizado pela Junta de Freguesia de Alvalade. De um lado e do outro da Avenida da Igreja, estão dispostos em casinhas 50 comerciantes e instituições, de acordo com a junta de freguesia. Há artesanato, produtos gastronómicos e actividades até este domingo, 17 de Dezembro. Mas este é apenas um dos vários mercados de Natal que estão a decorrer por estes dias em Lisboa.

Este ano, a Câmara Municipal de Lisboa licenciou o mercado de Natal no Rossio (o Rossio Christmas Market), o Mercado de Natal da Praça Luís de Camões e o Wonderland, no Parque Eduardo VII. Todos os que não têm o apoio da autarquia são tratados pelas juntas de freguesia. Estes mercados acontecem em Lisboa e pelo resto do país, de norte a sul de Portugal.

De onde vêm estes mercados?

Mas estes mercados com um conceito e designados “de Natal” são recentes em Portugal. “O mercado de Natal não é algo que tenha uma tradição portuguesa”, afirma Daniel Alves, investigador no Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que estudou a história do comércio e comerciantes de Lisboa. “A tradição do mercado de Natal com o Pai Natal é algo muito recente, que tem décadas, isto é, dez ou 20 anos, no máximo, os mais antigos.”

E de onde veio a inspiração para estes mercados? “É uma tradição dos países germânicos, do que vai dar à Alemanha e à Áustria já no século XIX”, responde Daniel Alves. Nova questão: que mercados eram e são esses? “Eram mercados animados e que, a partir do século XIX, começam a ser iluminados”, resume.

No território onde é hoje a Alemanha e a Áustria, há indicações de mercados associados ao Natal desde a Idade Média, mas há quem considere que os mercados verdadeiramente pensados para esta época festiva tenham começado mais tarde. Os investigadores Dirk Spennemann e Murray Parker (ambos da Universidade Charles Sturt, na Austrália) fizeram, para a revista científica Heritage, um percurso histórico por esses mercados.

Nesse percurso, referem que os mercados de Natal começaram, no período medieval, como uma oportunidade para que se pudesse adquirir bens para o período um pouco antes do Natal. Mesmo assim, alertam que, embora versões iniciais dos mercados de Dezembro em Viena no final do século XIII sejam indicados como os primeiros mercados de Natal, não se encontraram associações específicas às celebrações natalícias nesses eventos.

O início dos mercados de Natal é, portanto, “controversa”, considera-se no artigo. O despontar dos mercados verdadeiramente natalícios pode ter começado mais tarde. Mesmo que assim tenha sido, há indicações de que em mercados como o de Dresden, que se realiza desde 1434, se comercializassem, desde esse ano, doces ligados ao Natal.

Depois, vai havendo referências a mercados ligados ao Natal nos séculos seguintes: por exemplo, tem-se vindo a sugerir que, no século XVII e início do XVIII, muitos dos mercados dessa época nesse espaço geográfico se localizassem nas proximidades das igrejas para que se atraíssem fiéis. Já em meados do século XVIII, os mercados de Natal em Berlim tornam-se actividades regulamentadas.

Os brinquedos começam a ganhar espaço nesses mercados em Nuremberga, Dresden ou Berlim, no século XIX, devido às numerosas bonecas e outras figuras nas bancas. Também há indicações de que, nesse século, se restringiu o que se podia vender e quem o podia fazer nestas feiras. Ainda no século XIX, Dirk Spennemann e Murray Parker referem que estes mercados tiveram de competir com grandes armazéns com produtos mais baratos e também com medidas mais restritivas dos poderes locais. Os mercados foram passando para locais mais periféricos nas cidades e foram ficando com menos importância.

É no século XX que vão ganhando um novo espaço com o argumento de que eram “uma maravilhosa tradição alemã”. As decorações e a iluminação foram tendo cada vez mais destaque e, aos poucos, durante o século, foram-se tornando um “evento de cultura de massas”, até impulsionado pelo aumento do poder de compra no pós-guerra mundial, indica-se no artigo. Actualmente, só na Alemanha, existirão entre 2500 e 3000 mercados de Natal. Estes eventos natalícios acabaram por extravasar as fronteiras da Alemanha e da Áustria e estão por toda a Europa – incluindo em Portugal.

Das feiras de perus às bancas de brinquedos

Antes da chegada destes mercados designados “de Natal”, em Portugal, os mercados nesta época do ano seriam “mais animados”, porque as pessoas iriam procurar os produtos para a ceia de Natal, indica Daniel Alves. “Em alguns pontos do país, na época do Natal, as feiras eram mais concorridas”, assinala o investigador, dando exemplos como os de Castelo de Vide ou de Felgueiras. “[Essas feiras] não têm nada a ver com o mercado que se popularizou com o Pai Natal, com as luzes e as barraquinhas de venda de artesanato, que são algo muito recente em Portugal”, ressalva o historiador.

Nas feiras em Portugal, na época natalícia, o hábito era a venda de peru, porque a tradição era comer peru e legumes. Daniel Alves dá o exemplo do Mercado da Praça da Figueira, que foi criado já depois do terramoto de 1755 como mercado abastecedor da cidade de Lisboa: era tradicional que esse mercado tivesse maior abundância de produtos típicos da ceia nessa época, como os perus e as couves. Actualmente, esse mercado já não existe.

Há registos da venda de perus em Lisboa em imagens do Arquivo Municipal de Lisboa, algumas sem data e outras dos anos 60 do século XX, bem como em jornais. Na edição de 16 de Dezembro de 1906 da revista Brasil-Portugal, são publicadas duas fotografias de uma feira de perus, na véspera de Natal, no Largo de São Domingos, no centro da cidade. A 31 de Dezembro de 1906, a revista semanal Ilustração Portugueza também divulga uma imagem dessa feira no dia de Natal. E a 1 de Janeiro de 1911, a Brasil-Portugal publica uma fotografia da feira correspondente ao Natal de 1910.

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Venda ambulante de perus na época do Natal, no Largo de São Domingos, em Lisboa (fotografia tirada no século XX, mas sem data concreta) Paulo Guedes/ Arquivo Municipal de Lisboa
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Venda ambulante de perus no Largo de São Domingos, em Lisboa, no século XX, mas sem uma data concreta Arquivo Municipal de Lisboa

As feiras de perus são mencionadas como uma referência da época natalícia do passado em Lisboa, na crónica Natais de ontem e de hoje, de Appio Sottomayor, no jornal A Capital, a 22 de Dezembro de 1997. “Avessas aos grandes bulícios, as ruas da cidade viam-se, repentinamente, agitadas pela passagem de enormes bandos de aves pachorrentas, todas elas de monco caído e soltando, de vez em quando, ‘gluglus’ saudosos”, lê-se na crónica.

O jornalista referia que essa “invasão avícola” acontecia uns dias depois da festa da Senhora da Conceição (a 8 de Dezembro) e durava até ao dia 24 de Dezembro. “O sistema de compra e venda era tão amador como a forma de propaganda: o vendedor pegava uma ave por um sob as asas, convidava o freguês a tomar o peso ao bicho e perdia uma verba a condizer com o que lhe parecia”, descrevia.

Outro “sintoma” do Natal lisboeta do passado mencionado por Appio Sottomayor era a feira de brinquedos na Praça Luís de Camões. O jornalista referia que esta “era a mais tradicional”, mas que se foi estendendo a outros largos da cidade. Imagens do Arquivo Municipal de Lisboa, de 1961 e 1966, guardam a memória dessa feira na Praça Luís de Camões.

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Venda ambulante de brinquedos, na Praça Luís de Camões, em 1961 Arnaldo Madureira/ Arquivo Municipal de Lisboa
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Venda ambulante de brinquedos, na Praça Luís de Camões, em 1961 Arnaldo Madureira/ Arquivo Municipal de Lisboa

Na sua crónica, Appio Sottomayor contextualizava a ida a essas feiras há umas décadas. “Ora, se é certo que já existiam boas lojas de brinquedos (a antiguidade de algumas casas da Baixa é disso testemunha), a verdade é que a maioria dos alfacinhas não estava economicamente habilitada a entrar com à-vontade em todos os Natais num desses estabelecimentos”, escreveu. Dessa forma, na época natalícia, muitos fabricantes acabavam por entregar as suas produções a vendedores ambulantes – havia bonecas de pasta, mobília em miniatura ou carrinhos de lata. “Tudo isto chegava ao Camões, e a gente perdia-se a ver”, assumia o cronista.

A 13 de Dezembro de 1972, o Diário de Lisboa publicava uma reportagem precisamente sobre essas feiras de brinquedos: “Estamos agora numa banca da rua. Junto a nós uma criança olha extasiada: ‘Mãe, eu quero aquela junta de bois!’. ‘Quanto custa?’ – pergunta. ‘Como é para si, são apenas 40 paus!’ – exclama o vendedor.” Nesse artigo, indica-se que há brinquedos espalhados pelo chão e que o preço está “ao alcance de todos”.

Presépios e ginjinhas

Por estes dias, as bancas dos mercados de Natal em Lisboa são diferentes, tanto na Praça Luís de Camões como em Alvalade. Na Avenida da Igreja, Alberto Castro vende presépios e imagens de Santo António de cortiça e porcelana fria. Pela sua banca, há umas figuras mais tradicionais e outras mais “inovadoras”, como um presépio com figuras a tirar uma selfie ou um Santo António a andar de moto.

“Esta é a minha melhor feira do ano”, nota Alberto Castro, do artesanato Asdrovia. Também faz outras feiras durante o ano e já participou noutros mercados de Natal, como um no Centro Cultural de Belém ou outro no Príncipe Real. No mercado de Alvalade, participa há oito anos e acha que cada vez tem mais público. O artesão até já vai tendo clientes habituais. “Já tenho um presépio destes”, comprova alguém que está a ver a banca.

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Alberto Castro vende presépios de cortiça em mercados de Natal Nuno Ferreira Santos

Também Ana Mimoso faz este mercado há oito anos e já vai conhecendo as pessoas. Durante alguns dias, traz a Taverna d’Óbidos à Avenida da Igreja. Há pelo menos dez anos que faz mercados de Natal e diz que gosta muito.

Entre os pontos fortes da sua banca, tão iluminada, tem o vinho, chocolate quente e ginjinha de Óbidos. “Temos muitos adultos para vinho quente e muitas crianças para o chocolate quente”, realça. Um dos seus clientes do dia foi José Silvestre, que tanto se deliciou a beber o chocolate quente. Até ao fim do mercado, talvez este pequeno cliente ainda volte a passar pela banca do chocolate, quem sabe.

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