Kissinger, o mais amado dos criminosos de guerra
A diferença entre ele e os sucessores foi ter-se mostrado cético e irónico com a retórica dos direitos humanos e da democracia com que quiseram embrulhar o que continua(va) a ser a mesma política.
Que dele se digam banalidades como as do ex-primeiro-ministro e atual ministro britânico dos Estrangeiros David Cameron (“grande estadista e um diplomata profundamente respeitado”), e que às homenagens se juntem Putin (que dele guarda “as melhores recordações”) e Zelensky, ainda dou de barato. Valem o que valem. Mas entre o “gigante da História”, como lhe chamou o sempre pomposo Macron, ou o “mentiroso compulsivo” que o neoconservador Edward Luttwak assegura que foi Kissinger, “quase sempre por uma boa causa” ("The two faces of Henry Kissinger", UnHerd, 1/12/2023), fico-me com a tese de Luttwak, não só porque trabalhou na mesma Administração, mas porque ele próprio, ao reproduzir na sua vida uma boa parte do perfil de Kissinger, saberá bem do que fala. É o perfil dos académicos ambiciosos e bem sucedidos nos departamentos de Ciência Política que aplicam ao campo da política internacional (como assessores chorudamente pagos que, no caso de Kissinger, passaram diretamente pela gestão governamental) a intelectualmente mais cínica das teorias das Relações Internacionais, o realismo, a mais adequada para quem quer defender relações de dominação e hegemonia.
A vida de Henry Kissinger atravessou os últimos cem anos. Pelo menos em oito deles (1969-77), enquanto foi conselheiro de segurança nacional e depois Secretário de Estado dos presidentes Nixon (outra personagem que estava bem para ele) e Ford, terá sido responsável direto e indireto de milhões de mortos e rios de sangue em tantos pontos do mundo quantos aqueles em que o poder dos EUA era capaz de ser decisivo: Vietname, Laos, Cambodja, Bangladesh, Congo, Chile, Uruguai, Argentina, Chipre, Sara Ocidental, Angola, Timor… É graças a esses anos, e à extraordinária arrogância da personagem, que em quase todo o planeta a memória coletiva conserva o nome dele. Ele é pronunciado, contudo, com emoções muito diferentes consoante a visão do mundo e a posição que se ocupa na ordem internacional que a política de homens como Kissinger impuseram, reproduziram e têm ajudado a conservar.
Para os cultores do realismo neoconservador de Kissinger, para quem “a desordem é pior que a injustiça” e “a ordem é mais importante que a liberdade porque sem ordem não há liberdade para ninguém” (Robert D. Kaplan, “The tragedy behind Kissinger’s realpolitik”, UnHerd, 30/11/2023), isto é, para a elite social e de Estado da quase totalidade dos países nesta terceira década do século XXI, ele pode ser o “ser humano amável e a mente brilhante que, ao longo de 100 anos, moldou os [destinos] de alguns dos acontecimentos mais importantes do século”, como publicou Charles Michel, presidente do Conselho da UE, a propósito da sua morte (pergunto-me quem é que em Bruxelas escreve estas coisas aos eurocratas…). Para os muitos que, por todo o mundo, o consideram(os) um criminoso de guerra que saiu desta vida conseguindo evitar ser julgado pelos crimes que cometeu e ajudou a cometer, Kissinger é um dos mais categorizados representantes de uma elite política que apostou (e aposta ainda) tudo quanto pôde na preservação de uma ordem internacional que desde há, pelo menos, 80 anos está em crise, que não conseguiu parar o fim dos impérios coloniais e o avanço da emancipação dos povos do Sul Global, mas que resiste ainda à perda da hegemonia ocidental.
A diferença entre ele e os seus sucessores na diplomacia norte-americana é ter-se mostrado cético e irónico com a retórica dos direitos humanos e da democracia com que os que lhe sucederam quiseram embrulhar o que, afinal, continua(va) a ser a mesma política. Depois de abandonar o governo (1977), com a derrota eleitoral de Gerald Ford, Kissinger continuou a passear-se pelos meandros do poder e dos grupos económicos que melhor lhe pagavam a sua assessoria, receoso, isso sim, daquele que foi efemeramente, no final do século passado, um vento de mudança no direito penal internacional, de que resultou a criação do tribunal homónimo, e que teve na detenção em 1998 de Pinochet, um dos ditadores que Kissinger mais protegeu, um momento simbólico que o obrigou, durante alguns anos, a tomar precauções para evitar ser detido ele também, evitando viajar a alguns países onde magistrados abriram processos contra si.
Além do Chile e da Argentina, Kissinger teve de, em maio de 2001, deixar a França à pressa, depois de ter recebido uma intimação do juiz Roger Le Loire, que investigava o plano Condor, destinado a eliminar os opositores das ditaduras latino-americanas.”(Le Monde, 30/11/2023). Foram os anos em que, como escrevia o seu biógrafo Christopher Hitchins, “o homem rechonchudo de gravata preta na festa da Vogue não é, certamente, o homem que ordenou e sancionou a destruição de populações civis, o assassinato de políticos inconvenientes, o rapto e o desaparecimento de soldados, jornalistas e sacerdotes que se atravessaram no seu caminho? Oh, mas é. É exatamente o mesmo homem” (“Why has he got away with it?”, Guardian, 24/2/2001).
A mão de Kissinger esteve por detrás do pior, do mais sangrento, do mais cínico que a política norte-americana fez nos anos 1960 e 70. Golpes de Estado, operações de sabotagem, guerra suja contra opositores políticos de aliados dos EUA. You name it e o nome de Kissinger aparece sempre. Em todos os casos, ou houve iniciativa sua, ou foi com o seu conhecimento e autorização.
O caso chileno é seguramente um dos mais evidentes: estratégia de desestabilização social e sabotagem económica do governo de Unidade Popular de Salvador Allende (1970-73); depois de ter tentado impedir que Allende tomasse posse em 1970, promovendo, sem sucesso, uma conspiração que as chefias militares chilenas do momento rejeitaram (o que fez com que Kissinger ordenasse a preparação do sequestro de René Schneider, o chefe do Estado-Maior chileno), é a partir de Washington que se prepara o golpe de 11 de setembro de 1973, com o cerco e bombardeamento do Palácio de La Moneda onde morre Allende. Na brutal repressão que se segue, os mais de 20 mil mortos nada devem ter impressionado o homem que em tantas entrevistas se recordava de ter sido repetidamente agredido por nazis até à sua família fugir da Alemanha, em 1938, onde nascera 15 anos antes. "Você é uma vítima de todos os grupos de esquerda do mundo", disse Kissinger a Pinochet em 1976, "e o seu maior pecado foi ter derrubado um governo que se estava a tornar comunista".
Tudo somado, as mais pesadas terão sido as suas responsabilidades na condução da guerra americana do Vietname, e em particular na opção em bombardear o Camboja durante 14 meses seguidos (1969-60), provocando um milhão de mortos e abrindo caminho à tomada do poder pelos Khmeres Vermelhos (que os EUA ajudarão depois contra o Vietname). Mas dois outros casos têm diretamente a ver com a descolonização que a Revolução portuguesa levou a cabo depois do 25 de Abril. É Kissinger que, em visita a Jacarta juntamente com o presidente Ford, dá luz verde ao governo indonésio para invadir Timor-Leste (dezembro de 1975) por forma a impedir que o país se tornasse numa “Cuba do Sudoeste Asiático”. Já tinha feito o mesmo poucos meses antes com o Sara Ocidental, dando o beneplácito dos EUA à invasão marroquina. Quando Timor-Leste se tornou independente, depois de 25 anos de apoio norte-americano à ocupação indonésia e os 300 mil mortos que ela provocou, Kissinger fazia parte do júri que concedeu a Xanana Gusmão um prémio internacional. No discurso de entrega do prémio, escreveu que "os americanos podem orgulhar-se do papel que o seu país desempenhou no culminar destes acontecimentos".
Poucos meses depois, em 1976, perante a intervenção cubana para salvar a independência de Angola ameaçada pela invasão sul-africana com o apoio norte-americano, Kissinger terá ficado “apoplético” e propôs o bombardeamento de Cuba no que seria um gesto que, como em 1962, poderia simplesmente provocar uma confrontação nuclear.
O mais inconcebível de toda a sua biografia foi ter recebido, em conjunto com o negociador vietnamita Lê ĐứcThọ , o Prémio Nobel da Paz em 1973, por ter assinado o acordo de Paris e, segundo a Academia Nobel, ter "acabado com a guerra e restaurado a paz no Vietname". Não só Thọ rejeitou o prémio, lembrando ao mundo que continuava a não haver paz no Vietname (a retirada dos EUA só se dará em 1975), como dois membros abandonaram o Comité Nobel em protesto. Como disse o compositor e humorista Tom Lehrer, "a sátira política tornou-se obsoleta quando Henry Kissinger recebeu o Prémio Nobel da Paz".
Para Tony Blair, “se é possível que a diplomacia ao seu mais alto nível seja uma forma de arte, Henry era um artista” (Expresso, 1/12/2023). Só Blair, outro com pesadas culpas no cartório, para dizer coisas destas... Não. A melhor síntese de todas é o título do artigo que a Rolling Stone publicou: "Henry Kissinger, o criminoso de guerra amado pela classe dominante da América, finalmente morre".
O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico