No projecto Untold Palestine, documentar a vida dos palestinianos em Gaza é uma necessidade diária. A plataforma independente, que em português significa "Palestina não contada", é feita por uma equipa de 20 voluntários, muitos dos quais palestinianos que trabalham há vários anos para relatar histórias que, dizem, raramente aparecem nos meios de comunicação social. Mas o eclodir da guerra com Israel, a 7 de Outubro, mudou a forma como as narrativas são contadas.
Até então, as fotografias acompanhadas de texto tinham como missão “quebrar estereótipos e ideias preconcebidas” de um povo, que, explica o Untold Palestine num email enviado ao P3, ainda é associado à violência e ao terrorismo. Para provar o contrário, multiplicavam-se no Instagram histórias de artesãos, nadadores olímpicos, futebolistas, engenheiros, crianças com talento para a pintura e sonhos de muitos outros que ficaram em suspenso ou para sempre por cumprir. Desde Outubro que estas publicações deram lugar a uma espécie de diário de guerra que dá voz e vida aos que a perderam vítimas dos ataques do exército israelita.
“Esforçamo-nos por dar uma narrativa mediática alternativa acessível a todos, abordando as vítimas como indivíduos com nomes e vidas completas. Não é necessário vermos o corpo de um palestiniano em pedaços para sentirmos o espanto e o horror daquilo por que passou. O nosso objectivo passou a ser retratar estes mártires como pessoas comuns com sonhos e aspirações”, explicam.
Mohammed Abu Ammara, a mulher e os três filhos são exemplo disso. Procuraram refúgio dos bombardeamentos israelitas no restaurante italiano que tinham em Gaza mas, a 6 de Novembro, morreram no espaço que simbolizava “o sucesso e os sonhos” da família, lê-se no texto que acompanha as imagens da publicação. A história foi contada pelo neto.
Com a família de Hussam Al-khaldy aconteceu o mesmo. Em breves instantes, o rapaz perdeu os pais, o irmão, a cunhada e os sobrinhos. Momentos antes do ataque, tirou uma fotografia com a mãe “para o caso de acontecer alguma coisa”. A frase, explica o jovem no texto que acompanha as imagens da família, saiu-lhe em tom de brincadeira. Mais tarde, tornou-se realidade.
Estes dois testemunhos fazem parte da série “Não Somos Números”, mas são o espelho de muitos mais em Gaza. Neste momento, são cerca de 80 as histórias de vida documentadas neste projecto, tanto de quem já morreu como de quem sobrevive. E a cada dia há uma nova.
Documentar a guerra e os “sonhos por realizar”
Relatar a vida de alguém exige sempre uma pesquisa sobre a pessoa nas notícias e nas redes sociais, para combinar imagens e textos e criar uma relação de proximidade com quem vê. Segundo a plataforma, nenhuma informação é publicada sem ser confirmada e, apesar de o método de trabalho ser demorado, afirmam, tem transmitido conforto a quem perdeu entes queridos e agora confia no Untold Palestine para contar a sua história e a deles.
Entre as publicações, há quem fale dos amigos, dos primos, dos colegas de trabalho e dos filhos. Khaled, o único filho de Amal e do marido, tinha sete anos quando foi vítima de um ataque israelita. “A guerra é um acontecimento horrível que projecta sombras e tragédias sobre todos. No entanto, acreditamos que para acabar com as guerras em Gaza é necessário abordar as causas profundas destes conflitos em vez de investigar apenas o desencadear imediato da situação actual. Defendemos que a justiça deve ser feita para todos, garantindo aos palestinianos os plenos direitos sem compromissos. Sem isso, a violência não pode ser erradicada na região”, escreve a Untold, no email enviado ao P3.
Parte da equipa de fotógrafos está espalhada por toda a região da Palestina à procura de novas histórias para contar e os restantes estão na Europa. Entre as homenagens a quem morreu, estão também exemplos de sobrevivência como a de Muhammad Al-Ghrabli, que oferece doces aos deslocados que vivem no centro de acolhimento da cidade de Khan Yunis, no Sul de Gaza. E quando não há barulhos de aviões e bombas a cair, há crianças que aproveitam para ver o mar. “Todas estas histórias nos impactaram. Acima de tudo, estamos a documentar sonhos que ficaram por realizar, e muitos deles terminaram tragicamente”, concluem.